(HOMENAGEM AO POVO CUBANO, PUBLICADO EM 2010)
A AURA TIÑOSA
Uma jovem italiana, confirmei; vivendo
em Londres, disseram-me; deitada de costas na mesa de recuperação, observa
através da estrutura vidrada do ginásio, uma ave imponente que se destacava nos
céus de Havana: A aura tiñosa.
Apercebi-me da “provocação” nas lágrimas
que lhe deslizavam pela face e se perdiam nos cabelos. A aura, além de evidenciar as nossas limitações, alertava-nos para as
humanas fragilidades, remetendo-nos ainda para a reflexão em nós tão pouco
frequente, principalmente quando tudo nos corre de feição.
Um acidente de aviação,
avião particular
em que
se deslocava de Londres para Espanha onde ia assistir a uma festa - gente abastada, obviamente - deixou-a presa
a uma cadeira de rodas.
E porque recursos
não lhe
faltavam, de uma clínica em França transita para uma
outra na Suíça
onde os meios
técnico-científicos são, forçosamente, o que
há de mais moderno,
ou não
fosse terra de bancos
ajoujados, em que
o dinheiro sujo,
ou melhor
dizendo, manchado se sangue, espalha o aparente bem-estar.
Nada lhe falta! e no entanto... a
tristeza, o desalento, o esboroar de sonhos em construção, transbordava pelo
rosto suave dessa jovem de vinte e um anos.
Na estéril, fria e daqui longínqua Suíça,
com todos os bens materiais que o mais exigente ser humano pode ambicionar, não
foi possível comprar um simples sorriso, nesse país de afectos esterilizados,
onde a alegria desde há muito repousa em frascos de formol.
Via-a chegar: pálida, frágil como uma
pequena ave apanhada pela refrega. Observo-a: distante como que pelo absurdo a
paraplegia não lhe dissesse respeito; faz os movimentos de recuperação sem
interesse, mais: que os outros os façam por ela. O trauma está bem vivo. Na
acética, austera e formal Suíça, repetiram-lhe vezes sem conta: a sua vida vai
ser na cadeira de rodas, adapte-se, e, já agora, digo eu, não se esqueça de
deixar na caixa os mil e duzentos euros por dia.
Veio para Cuba. A Beatriz,
profissional competente
e atenta tanto
ao estado de saúde
física como
psíquica da paciente
que lhe
foi indicado recuperar, vai cumprindo os exercícios que lhe deve ministrar e,
conversando naturalmente, como se estivesse, e estava fazendo o que há demais natural, não
retém a gargalhada oportuna,
nem se inibe do dichote ou da conversa brejeira com
uma jovem de Porto
Rico com patologia semelhante,
mas determinada.
O ambiente
é cordial e a música
cubana não deixa
ninguém indiferente,
envolvendo todos, mesmo
os de esperança adiada. A recuperação da jovem
italiana é lenta a todos
os níveis e, sendo embora
difícil extrair-lhe o esboço de um sorriso, timidamente o semblante
descontrai-se abrindo-lhe o caminho.
A “salsa” dá o ritmo a uma nova vida,
dos Helvéticos fica a recordação do silêncio, de o tudo recheado de nada, das luzes reflectidas no aço inoxidável que
nos transportam para os filmes de ficção científica.
O sol entra pelas vidraças do ginásio e
acumulado que está no espírito desta gente, aquece o ambiente e os espíritos,
distribuindo alegria e alento, húmus onde cresce a esperança.
O dia
de hoje é de festa:
ela mexeu um
dedo de um
dos pés! O pai,
neurocirurgião italiano, veio visitá-la;
dez minutos,
visita de médico.
Ninguém poderá determinar
até onde
irá a recuperação; entretanto
a confiança começa
a ocupar o seu
espaço para que a existência
tenha sentido.
Observo-a de novo: de regresso ao
ginásio, ânimo revigorado, aflora o primeiro sorriso; na mesa dos exercícios
tenta esforçar-se; um negro gingão, fisioterapeuta também, acaba de chegar e
dá-lhe um beijo. A naturalidade e a fraternidade entrelaçam-se, não há doentes
nem sãos, pretos ou brancos, ricos ou pobres, há a participação técnica e
afectiva de todos no esforço comum para encontrar os caminhos da vida.
E já nesse caminho, vereda ainda,
ouve-se música, trabalha-se e, para os casos mais extremos ou para os que
requerem menos cuidados a atenção não difere.
Só a aura
tiñosa ensombra os céus de Cuba. Misto de ave de rapina e abutre, mantém-se
atenta á mais pequena falha ou a qualquer movimento descuidado da sua potencial
vítima. Além do mais os abutres não suportam a alegria dos povos, irrita-os a
cultura e o saber, componentes essenciais da liberdade.
O vizinho
tinhoso mudou de abutre
mas não
desarma, gasta biliões
de biliões em
armamento sob
o olhar perplexo de biliões de famintos.
O povo
cubano resiste, e esta luz que tudo
esclarece, provavelmente encandeia de tal
modo que
obstrui a realidade.
3 comentários:
O vizinho ,alêm de tiñoso,ê burro.(Sem querer ofender os animalitos)Ainda nao entendeu,que um povo culto,nao pode ser vencido.Cuba continua e continuarâ,viva!A maioria do seu povo,herdeiro de Martî,sabe o que tem a perder,caso opte por alternativa que nao seja o socialismo.
Abraco
Parabéns, por este post. A luta política sem emoção, sem sentimento, sem um sólido fundamento de humanidade, não será - nunca o poderia ser -, a nossa luta. Abraço.
Gostei.
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