terça-feira, 29 de julho de 2008

GLOSSÁRIO (III)

«Donde colho que naõ he bom o dinheiro para paõ; que se fora paõ, nunca houvera de matar a fome.»

Arte de Furtar, Capitulo XXX

Todos os dias, são despejadas na minha caixa do correio electrónico prendas como esta:

«Excelentíssimo Senhor,

Pretende V. Ex.ª ressuscitar termos obsoletos que nada têm a ver com o país real. V. Ex.ª ignora a realidade, é um ultrapassado que não assimila o progresso, os avanços tecnológicos, a globalização e a submissão ao Cifrão. V. Ex.ª é um dinossauro que nem sequer vai deixar pegadas na Pedreira do Galinhas.

Qual a razão porque não deixa de matraquear os que dentro desta sociedade, tal como é, usam (e por vezes abusam) dos múltiplos meios, colocados ao seu dispor, de toda uma panóplia de instrumentos, com suporte legal, com os quais conseguem, como qualquer outro ladrão, os mesmos objectivos, em cenários que o próprio Arsene Lupin jamais teria imaginado?

Supomos que essa sua doentia obsessão, por este tema, se deverá ao facto de ver muitos filmes. Não perca o seu tempo porque a realidade ultrapassa, em muito, a sua frouxa ficção.

Entretanto, e como nos pede, sugerimos-lhe alguns termos que poderá inserir no seu pseudo glossário:

«Todas as grandes burlas saíram incólumes em virtude de a justiça, durante o prazo legal, não ter exercido o seu direito de acção ou efectivado a condenação imposta.» Deste modo, a prescrição é o instrumento de maior valia para os ladranzanas de colarinho branco que, possuindo poderosas máquinas de advocacia, pagam principescamente aos que, por vezes directamente interessados, a utilizam para legalizar os seus crimes.

Tome nota: Prescrever, prescritível, prescrito. Junte ao seu glossário. E já agora não se esqueça de consultar um psicanalista.

Atentamente

Associação para a Dignificação da Arte de Furtar (ADAF)»

Seguirei o conselho quando chegar ao fim deste passatempo.

A avidez do galfarro não perdoa, deita a mão ou o gadanho; gadanhar ou gadunhar são artes do gamanço dos que sabem gamar. Gatázio é grande logro e deita-se o gatázio a alguém ou a alguma coisa. Gatear é roubar já o gateador é ladrão manhoso e gato, dar gato por lebre, fala-nos de logro. Gatuno é termo corrente e gatunice a sua prática; levar vida de gatuno é gatunar, tal como gatunagem é o colectivo destes meliantes. Gaturama ou gaturamo não faz mais que gaturar ou gaturrar. No Brasil, guinda é roubo com escalada, e, para nós, ao guindar rouba-se carteira e também, em calão, guindo é simplesmente roubo. Intrujão ou entrujão é o que faz intrujice e, ao intrujar, burla-se. Intrusão é usurpação, posse ilegal e violenta, acção de se apossar de um cargo, de uma dignidade… o dia-a-dia em suma.

E assim chegamos ao trivialissimo: LADRÃO! Que no feminino nos dá a ladra, ladrona ou mesmo ladroa. O ladranete é o ladrãozinho de meia-tigela; ladripar é surripiar coisa de pouco valor, trabalho do ladripo ou do desclassificado ladranete, já mencionado, assim como do ladrisco, um tanto tolerado, vejam bem! Na gíria do Porto ladrilho é simplesmente gatuno. E sendo ladro ladrão, ladroar a acção e ladroagem seu vício, ou bando de ladrões, ladroado é o roubado. Defesa contra o ladroísmo eleitoral vem a propósito, é mais que ladroeira ou ladroíce, ladroísmo é um hábito, um vício dos que, ao ladroeirar, vão fazendo as suas ladroeiras. Temos, por fim, o ladranzana, ladravaz, ladravão ou ladroaço, palavrões aplicados aos grandes ladrões, não àqueles que desviam milhões, não: por uma questão de pudor, estilo ou conivência, o vocábulo não se lhes aplica. Sua excelência senhor fulano de tal ladranzana, ladravaz ou ladravão! Convenhamos que temos que encontrar palavras para esses crápulas. O larápio, ao larapiar ou larapinar, faz larapice; não é violento como o que, ao latrocinar, comete o latrocínio, roubo violento, mesmo à mão armada. Leilão é roubo no Dicionário de Calão. Levar, libertar e limpar vivem nas margens do jargão; faz-se limpeza ou livrar a alguém o que lhe pertence. Ao lograr pratica-se o logro a que nos sugeitam diariamente.

Ainda me faltam cerca de setenta vocábulos. Se soubesse não me tinha metido nisto, mas como sou persistente não desisto. Até ao “Glossário IV”.

2 comentários:

alupo disse...

Deixo aqui a minha opinião sobre este seu cantinho, muito interessante.
Os meus comprimentos.

Fernando Samuel disse...

Não desistas: este glossário merece ir até ao fim - e chegar a muita gente...

Um abraço.