domingo, 31 de outubro de 2010

Os siamêses


Ligados pelo bestunto estes siamêses não podem ser separados por qualquer intervenção cirúrgica.

Marram para a esquerda e simulam marrar para a direita.


Contra as últimas chifradas
um bom par de bandarilhas
e um capote
«GREVE GERAL»


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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A galinha da minha vizinha





“A retoma depende da moderação salarial”

OCDE

A galilha da minha vizinha

Era uma galinha cumpridora, corpulenta, bonita mesmo, um verdadeiro luxo. Um galináceo que, no estrangeiro, dava bom rendimento e em Portugal se propunha exercer, com desvelo, a missão que a natureza lhe predestinou, necessitando de uma alimentação saudável, conforto e descanso indispensáveis, para assim manter a regularidade das posturas e a qualidade dos ovos, salvaguardar a sua integridade física e o rendimento de quem a empregava.

Acontece que a minha vizinha absorvera os modelos de gestão em voga, sabia o que queria dizer competitividade, produtividade, deslocalização e outros palavrões que rimassem com exploração.

Dia em que a galinha, por razões naturais à sua condição, não expelisse o ovo, antecipadamente contabilizado, a dona Competitividade, assim se chamava, entrava em stress, resmungava, fechava o bicho no caixote onde exercia a sua função de poedeira, batia com a porta do galinheiro e, saindo, ia congeminando modelos vários de vingança, caso o pobre bicho não correspondesse à sua cada vez mais exacerbada gula.

E porque ao pobre galináceo era impossível corresponder à produtividade estabelecida pela dona Competitividade, esta pôs em prática um plano coercivo, semelhante ao que vem sendo aplicado aos trabalhadores por conta de outrem: reduziu-lhe os meios de sustento; e, como o salário da sua galinha se resumia à alimentação, cortou-lhe a ração.

Ai não pões?! Então não comes!

E assim começou o irracional braço de ferro, imposto pela dona Competitividade à sua bela e esforçada galinha.

Se a OCDE alerta para os aumentos salariais excessivos, não obstante sermos o país da UE com as mais baixas remunerações; se os humanos com fome trabalham por qualquer preço, e humanos assim os denominam, por que razão qualquer galináceo, aliás tido como um dos animais mais estúpidos, não há-de ceder também às minhas exigências?

A dona Competitividade entrava em transe quando via uma linha de montagem; tudo muito certinho, a compasso como nas marchas militares, e estendia essa sua admiração às baterias de galinhas poedeiras: fechadas, passivas, produtivas sem barafustarem e não manifestando qualquer exigência ou lamento.

Entretanto, e porque o castigo da dona Competitividade se mantinha, a galinha da minha vizinha, já num adiantado estado de desnutrição, adoeceu e, por muito que se esforçasse, nunca mais pôs. Cada vez mais fraca, lá se ia arrastando como podia até ao Centro de Saúde onde chegava pelas cinco da manhã, para garantir a consulta nem sempre conseguida.

As terapias de choque, impostas pelas donas Competitividades são o castigo mais perverso que se possa imaginar. Sob a capa de garantir o futuro assassina-se o presente, deixam-se morrer as galinhas de hoje para garantir os ovos de amanhã.

A irracionalidade e o raciocínio canalha da dona Competitividade são de uma frieza e imoralidade tais que só gente inibida de sentimentos pode aceitar ou aplaudir.

Escorados pela sagrada rendibilidade, cometem-se os mais abjectos crimes sociais, lançando na extrema miséria agregados familiares inteiros, sem qualquer pudor ou o mais pequeno resquício de remorso.

Extorquir o pão a alguém como única condição para lhe garantir a incerta côdea de amanhã é hoje uma constante, confirmada pelas gélidas estatísticas de desemprego que nos afogam em percentagens para que esqueçamos os dramas que cada dígito representa.

A galinha da minha vizinha vai fazer greve no dia 24 de Novembro.

Um bom exemplo.


quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Os pilantras e a pilhagem


Daniel Bessa é aquela peça que cada vez mais se enerva por não nos apertarem ainda mais o torniquete. O Bessa tem muitos comparsas também pagos à peça como o Bessa. O Bessa afirma e jura quevão ser precisos outros PEC” […] “que vamos entrar num período de recessão durante muitos anos e que as receitas não chegam”.

O Bessa, megafone dos banksters, quer nos fazer crer que lhes é possível continuar a pilhar um povo que desejam submisso.

Os Bessas fazem por ignorar que nada é eterno e que a revolta muitas das vezes se encontra ao virar da esquina.

Mas

La nuit n’est jamais complète

Il y a toujours puisque je le dis

Puisque je l’affirme

Au bout du chagrin une fenêtre ouverte

Une fenêtre éclairée

Paul Éluard

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terça-feira, 26 de outubro de 2010

Antero de Quental - Civilização ou barbárie


A UM POETA

(surge et ambula)

‘ergue-te e anda

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, alto e pleno
Afugentou as
larvas tumulares
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera um aceno

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções
Mas de guerra… e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos
raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Antero de Quental

Sonetos, 1886

domingo, 24 de outubro de 2010

Aos vacilantes


O fascismo vem fazendo exercícios de aquecimento.

Um texto oportuno para os que se menosprezam.

A BICICLETA

Aderimos a uma causa impelidos pela emoção. A emoção é o húmus do nosso descontentamento e a injustiça a madre e o alimento que lheconsistência e impele à acção. A consciência vamo-la construindo e burilando na realidade onde nos movimentamos e, destarte passando à firmeza da acção consciente. É um processo delicado, moroso, que necessita de criterioso acompanhamento para impedir o individualismo latente em cada um de nós e, se não atentos, se instala facilmente inquinando as relações entre os que se nutrem dos mesmos ideais.

Vivíamos nos meados da década de sessenta. As preocupações corporizavam-se. Refractários e desertores engrossavam o fluxo migratório de um povo que fugia à repressão e às degradantes condições sociais. A guerra colonial começava a inquietar grande parte da população e, alguns por ignorância, cretinismo ou maldade supunham que iríamos aplicar um correctivo aos pretos, – era deste modo que se referiam aos autóctones africanos - e regressaríamos ajoujados de condecorações para exibir nas paradas de glorificação à lusitana valentia.

A CGTP dava os seus primeiros passos na clandestinidade. Nas cooperativas, clubes desportivos -- onde quer que se pudessem organizar mesmo sob uma legalidade vigiada -- os trabalhadores promoviam-se culturalmente realizando debates com escritores, actores, pintores, músicos, alguns padres progressistas, poetas e muitos outros intelectuais democratas que se opunham ao fascismo. As bibliotecas eram os núcleos de todas estas actividades onde se fomentava a leitura e se divulgava livros proibidos e outros que, embora passados pelos crivos da censura, continham ainda alguma substância.

Cada vez mais isolada a nível interno e internacional, acossada pelos movimentos de libertação das colónias e por uma população que despertava e um operariado industrial e agrícola cada vez mais politizado, a besta fascista abria as garras, rosnava: a repressão atingia o paroxismo e, desde sempre, o Partido Comunista era o seu principal alvo.

É neste clima de sufoco que sou abordado por um empregado da livraria onde me deslocava com frequência e com o qual mantinha uma relação de conivência, reservando-me ele livros colocados no índex ou em vias de o serem. Nunca nos havíamos tratado por tu, mas dando a ideia de falarmos de livros coloca-me de chofre a questão: “Precisamos da tua ajuda. Temos que encontrar urgentemente um lugar seguro para um camarada.”

A vida de qualquer um de nós encontra-se suspensa no imprevisível: uma palavra, uma frase, um encontro e o rumo que lhe damos faz de nós outro indivíduo para melhor ou pior, consoante a escala de valores por que nos regemos.

Até então as minhas tarefas eram semi-clandestinas, organizando, embora com forte vigilância da PIDE, sessões culturais, bibliotecas, contactos com intelectuais progressistas, ou no local de trabalho encabeçando reivindicações.

Tendo em conta as tarefas que desenvolvia e o local onde as exercia, não seria propriamente alguém que passasse despercebido ou não estivesse referenciado.

Esta proposta elevava a um nível qualitativamente superior as tarefas que me eram confiadas, implicava riscos para os quais não me sentia suficientemente preparado e, além do mais, com uma dificuldade acrescida: tinha dois filhos e dependeria da minha mulher a decisão final.

Voltei com a urgência possível para confirmar a nossa disponibilidade e organizar o acolhimento do camarada. Uma satisfação contida e o sabor da adrenalina que noutras ocasiões havia mastigado.

Trabalhos rotineiros nos primeiros tempos de adaptação, a aprendizagem envolta em cuidados novos e simulações diversas. A memorização de matrículas de automóveis da PIDE e uma atenção constante a comportamentos envolventes mantinham todos os sentidos em permanente alerta.

mais tarde e aos poucos fui sentindo que o trabalho clandestino acarretava enormes riscos e responsabilidades, exigindo um esforço constante, muita ponderação, um grande equilíbrio emocional como quem caminha no gume da faca para evitar a queda. Eram os cuidados a ter com a vizinhança, o afinar da linguagem atenuando a agressividade e temperando os nervos no fogo lento em que passámos a viver.

A nível profissional vivia sob um clima de repressão, em virtude da liderança em movimentos de contestação que não rejeitava sempre que necessário. Um outro emprego, a meio-tempo, para equilibrar o orçamento obrigava-me a um esforço suplementar. Eram as reuniões da secção cultural de que fazia parte, a procura de livros para a biblioteca, contactos para as realizações culturais e o apoio ao camarada que vivia no sótão da minha casa e, bem entendido, uma atenção redobrada com a família.

O cansaço condicionava a nossa actividade intelectual e a vida no lamaçal opressivo em que o fascismo nos mergulhava levava-nos a questionar se os riscos a que estávamos sujeitos se justificavam, face aos perigos constantes a que éramos submetidos na actividade clandestina.

É sob este estado de espírito que uma tarde saímos no meu Citroën 2CV a caminho de … eu não sabia onde. O funcionário transportava como bagagem duas tábuas atadas com um cordel. Claro que me apercebi que o nosso destino não seria nenhuma carpintaria e que as tábuas não eram mais que um disfarce, no meu entender bem conseguido.

Atento a alguma movimentação anormal, a viajem prosseguia como habitualmente e o diálogo, reduzido ao essencial, tornava o percurso ainda mais penoso. Frases obsessivas percorriam-me a mente: “justifica-se o risco que estou correndo?” “Servirá para quê o que estou fazendo”? “Que acontecerá à minha mulher e aos meus filhos se me prenderem?”.

Seguindo as indicações que ia recebendo, chegámos a um local na Quinta da Lomba onde o funcionário desceu e, dentro do estabelecido, depois de confirmarmos as horas em ambos os relógios, eu deveria estar nesse mesmo local, precisamente daí a dez minutos e, no caso de um de nós não estar, voltaríamos cinco minutos depois e não tornaríamos a aparecer se o encontro não se efectuasse.

Para não ficar parado e gastar esses dez minutos, fui andando pelas imediações do local de encontro, atento às horas e a todas as movimentações. Num caminhar firme, levando à mão uma velha bicicleta, um homem em fato-macaco chamou a minha atenção e aproximei-me ultrapassando-o, dado que se encontrava no meu caminho.

Percorreu-me uma emoção havia muito não sentida e, de olhos marejados, prossegui com dificuldade os poucos segundos que me restavam para o reencontro. No porta-bagagens da bicicleta, atadas com uma corda, seguiam as tábuas que sem mim dificilmente teriam chegado. Senti-me um elo dessa grande corrente revolucionária que é o meu Partido, recuperei, nesse breve mas decisivo instante, a vontade de continuar, a necessidade de avançar porque nessa luta estava o futuro dos meus filhos e o dos filhos de todos os oprimidos.

A imagem do camarada da bicicleta e a bagagem que eu lhe havia feito chegar para continuar pelos mais variados modos o seu caminho serviu para alimentar a minha perseverança nos momentos de grandes dificuldades e perigos em que a debilidade espreitava.

A opressão é um lodo onde o caminhar cansa e sufoca; nele germinam vermes que nos sugam a alma e corroem a vontade; os estímulos que recebemos surgem de imagens e encontros que nos marcaram e de rostos e exemplos que não nos é possível esquecer.

Saber controlar a revolta conduzindo-a de acordo com o espaço e o tempo é mérito do revolucionário; um passo em falso e perdem-se anos de organização e sofrimento.