quarta-feira, 30 de maio de 2018

As pérolas e os porcos


                 O senhor Diogo

Num jornal, o ‘Editorial’ é como que o hálito de quem o elabora ou permite, deixando-nos sem saber se o odor é fruto de dentição putrefacta ou flato intestinal.

Seguindo o figurino imposto pelo Império, quanto à Venezuela, “Maduro vence eleições presidenciais que a oposição e a comunidade internacional não reconhecem” o bafo é fétido, pestilento. Suspendam a respiração, é: – assim

Quatro eleições ganhas num ano, são um atentado à democracia?

O mesmo editorialista, usando o desodorizante bocal da EU/EUA, exalta as recentes eleições na Itália,

«Não podemos mudar os princípios à democracia quando os resultados não nos agradam, esse é o princípio da coesão social que tem aguentado a Europa ao longo dos últimos 60 anos. (…) As escolhas democráticas são soberanas, não pode haver interferências em nome de um bem maior, por muito tecnocráticas que sejam.» (aqui)

Estes trolhas do jornalismo, se não fossem tão perigosos faziam-nos rir.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Alzheimer UE e Venezuela



Maduro dirigindo-se à União Europeia:

“Fora daqui, chega de interferências.”

A Europa perdeu o tino, a Europa que dominou o mundo, hoje colonizada por um dos seus abortos, atua como se sofresse de Alzheimer, dirigindo-se às suas antigas colónias com a arrogância de então. Perdeu a noção de tempo e espaço.

Pobre e triste Europa!...

A UE não aceitou enviar observadores às eleições venezuelanas, no entanto, baseada no que desconhece, em conferência de imprensa a matreira Federica Mogherini – Alta Representante da União Europeia para Assuntos Exteriores e Política de Segurança/Vice-presidente da Comissão, concluiu:
  
Extrato: “Grandes obstáculos na participação dos partidos políticos da oposição e seus representantes, uma posição desequilibrada do Conselho Nacional Eleitoral, condições eleitorais pouco claras, numerosas irregularidades encontradas durante o dia das eleições, incluindo a compra de votos, impediram umas eleições justas e equilibradas”.

Anunciando que os países do bloco europeu ‘consideram adotar medidas adequadas’ contra Caracas pelas ‘irregularidades’ no processo eleitoral.

O simples facto de ter recusado participar como observadora, a UE não tem a mínima legitimidade em se pronunciar sobre o processo eleitoral na Venezuela, muito menos ameaçando ou criticando de modo aleivoso um processo que todos os observadores consideram exemplar.

Jeremy Fox, escritor e jornalista britânico, escreveu-lhe:

Estimada, Sra. Mogherini,
 
Yo formé parte del casi centenar de Observadores de las Elecciones Venezolanas del 20 de mayo. Nos reunimos con representantes de alto rango de todos los candidatos y les hicimos planteamientos directamente. Nos reunimos con el presidente y dos vicepresidentes del Tribunal Supremos de Justicia. Examinamos el sistema electoral en detalle y, el día de las elecciones, observamos los procedimientos de votación en todo el país. Notamos, en particular, no solo la sofisticación del sistema de votación que, en nuestra opinión colectiva, es a prueba de fraude, sino también que cada etapa, desde la votación misma hasta la compilación de declaraciones, su verificación y presentación electrónica se realizó en la presencia de representantes de las partes contendientes. En cuanto a "informar irregularidades", estaríamos interesados en escuchar ejemplos, ya que el sistema de informes es excepcionalmente riguroso y libre de falsificaciones. Dudamos de que tenga alguna evidencia que respalde el reclamo de la UE de “numerosas irregularidades reportadas”.

Fuimos unánimes al concluir que las elecciones se llevaron a cabo de manera justa, que las condiciones electorales no fueron sesgadas, que las genuinas irregularidades fueron excepcionalmente pocas y de naturaleza muy leve. No hubo compra de votos porque no hay forma de que se pueda comprar un voto. El procedimiento en sí mismo excluye cualquier posibilidad de que alguien sepa cómo un votante emitió su voto; y es imposible, como lo verificamos, que una persona vote más de una vez o que alguien vote en nombre de otra persona.

En resumen, las afirmaciones en su comunicado de prensa son invenciones del tipo más vergonzoso, basadas en rumores y no en evidencias e indignas de la UE. No ha pasado inadvertido que la UE fue invitada a enviar observadores a las elecciones y se negó a hacerlo. Ninguna de las críticas en su comunicado de prensa de la UE, se basa, por lo tanto, en la observación directa de la UE en el terreno. Estaría encantado de discutir esto más a fondo con usted y ponerle a usted o a sus colegas en contacto con otros observadores, entre los que se encontraban políticos de alto rango, académicos, funcionarios electorales, periodistas y funcionarios públicos de diferentes naciones, incluyendo: España, Reino Unido, Irlanda del Norte, Alemania, Brasil, Argentina, Uruguay, Paraguay, Chile, Honduras, Italia, varios países del Caribe, Sudáfrica, Túnez, China, Rusia y los Estados Unidos.Atentamente, Jeremy Fox
Escritor/ Jornalista - RU


«NOTA: MÉXICO, A consultora de riscos Etellekt dá conta de 313 agressões contra políticos entre 8 de Setembro de 2017 e 26 de Maio de 2018. Mais de uma centena encontram-se sob ameaça e 102 foram assassinados.» CADÊ a UE?

sábado, 26 de maio de 2018

O Alma-Grande - Miguel Torga



O Alma-Grande


Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre João benze, perdoa, batiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas.
- Quem é Deus ? - É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra.
Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa a Thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele segredo - abafador.
Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar a honra do convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande.
Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no Destelhado, uma rua onde mora ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar aquele pai da morte já sabia que tinha de subir pela encosta acima a lutar como um barco num mar encapelado.
- Raios partam o vento! Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina, sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a ladeira.
Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome. - Tio Alma-Grande! ó Tio Alma-Grande!
Lá vai... Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao moribundo.
Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saia com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força do vento, o reclamava.
- Tio Alma-Grande! ó Tio Alma-Grande! - Lá vai... E aparecia à porta logo a seguir. Quando a hora do Isaac chegou, foi um filho, o Abel, que trepou a ladeira. O garoto vinha excitado, do movimento desusado de casa, da maneira estranha como a mãe o mandara chamar o Tio Alma-Grande, e da ventania.
- Que tem o teu pai, rapaz?
O pequeno olhou fixamente a cara seca do abafador.
- Febre... - Bem, vamos então lá...
- E que é que o Tio Alma-Grande lhe vai fazer?
- Vê-lo... Pela rua abaixo só o vento falava. Rouco de tanto bradar, monocórdico, persistente, era nele que tinha expressão a intimidade de ambos: um, o pequeno, nervoso, inquieto, a braços com pressentimentos confusos, que se recusavam a sair-lhe do pensamento; o outro, o velho, a aceitar aquele destino de abreviar a morte como um rio aceita o seu movimento.
Em casa havia lágrimas desde a soleira da porta. Mas a entrada do Alma-Grande secou tudo. Atrás dos seus passos lentos e pesados pelo corredor ficava uma angústia calada, com a respiração suspensa.
- O que é que ele lhe vai fazer? - perguntou de novo o Abel, agora à mãe, quando a porta do quarto se fechou.
A Lia respondeu ao filho com duas lágrimas silenciosas pela cara abaixo.
Lá dentro, colado à cama que a transpiração alagava, o Isaac parecia ter chegado ao fim. Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara, opresso, como que só esperava a ordem de largar a vela. Tinha adoecido havia quinze dias. Um febrão tal que o Dr. Samuel desanimou. Veio, tornou a vir, e acabou por aconselhar que tratassem do caixão. Mas o Isaac era cedro do Líbano, rijo, no cerne. Depois desse desengano ainda o mal o roeu seis dias sem o comer. E sempre de olhinho vivo. Gemia, gemia, finava-se, mas com aquelas duas contas de azeviche a reluzir. Acabou, contudo, por lhe pousar no rosto uma sombra estranha; e a mulher, a Lia, abriu mão da esperança. Dois dias mais, e como na sala a D. Rosa lembrasse a confissãozinha, um irmão do Isaac, o Daniel, chegou-se à cunhada e deixou cair, entre duas palavras de consolo, o nome do Alma-Grande. A Lia, a princípio, reagiu quanto pôde. Mas a perspetiva do padre João a entrar-lhe pela casa dentro venceu-a Mal rompeu a manhã, com uma voz que fez medo ao filho, mandou-o chamar o abafador.
Quando o Alma-Grande entrou, o Isaac estava no auge de um combate que quase sempre se trava de corpo extenuado. O inimigo era uma parte de si mesmo apostada em perdê-lo. E a outra metade, um pedaço de ser nobre e agradecido à seiva, corajosamente defendia o resto da muralha. As bagadas pelas têmporas abaixo e um ritmo apressado da respiração davam sinal desta guerra. Mas de nada mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir a grandeza e a solenidade de tal hora.
Por desgraça, o Alma-Grande não podia ver aquilo. Insensível à profundidade dos mistérios da vida, sem o estremecimento de uma fibra sequer, avançou para o leito num automatismo rotineiro. O seu papel não era olhar; era ir inteiro com as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se uns minutos depois, como um instrumento que tivesse cumprido corretamente a sua função.
No seu castelo o Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do arcaboiço metia ar na fornalha; espesso, cálido, activo, o suor ia brotando do vulcão.
A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos petrificados e mudos. Só no quarto havia movimento e palpitação. Calado, o Alma-Grande avançou. Mas quando de mãos abertas e joelho dobrado ia a cair sobre o Isaac, fê-lo parar uma voz diferente de todas as que ouvira em momentos iguais, que parecia vir do outro mundo, e dizia:
- Não... Ainda não... Ainda não... Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada! Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira.
- Não... Não... Ainda não... Um pano escuro que até ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se de cima a baixo. E o abafador, paralisado entre as trevas do hábito e a luz que rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino.
- Não... Ainda não... Ainda não... Era terrível o que se passava. A luta que o Isaac sustentava contra forças que nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate dos dois homens, um a saber que ia matar, outro a saber que ia ser morto.
Estiveram assim algum tempo, de olhos cravados um no outro, a medir-se. Pesado, o suor escorria pela cara do Isaac; quente, o sangue martelava nas têmporas do Alma-Grande.
Foi o ruído súbito e em guincho de uma porta que fez explodir aquela concentração.
O barulho a ouvir-se, e o Alma-Grande, como um peso suspenso e de repente liberto, a cair em cima do moribundo. Nem uma palavra só. Apenas um baque surdo, e as mãos sôfregas do agressor à procura do pescoço do Isaac.
Mas a porta que rangera dera entrada a alguém. A um vulto que o Alma-Grande adivinhava atrás das costas, parado, lívido, a tentar compreender.
Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a presença atónita do Abel, tiraram às mãos e ao joelho do Alma-Grande a força habitual. Bem que se extremara nele o assassino, o animal que bebia a grossos tragos o fio de vida que encontrava no caminho! Bem que se lhe avivava na consciência a certeza de que era matar a razão do seu destino! Em vão. O puro instinto não tinha coragem para empurrar aquelas mãos e aquele joelho diante de uma testemunha.
Ergueu-se. Com o rosto coberto por um pano de lividez igual à do agonizante, voltou-se. E sem coragem para encarar os arregalados e aflitos olhos do pequeno, que o varavam, silenciosamente, saiu. Atravessou a sala cabisbaixo, longe da majestade trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava grandeza.
Quando, um segundo depois, a Lia, como um bicho culpado, entrou no quarto, o filho estava sentado na cama, com a pequena mão na testa do pai. A criança debatia-se num agitado mar de brumas; mas o seu coração ditava-lhe a mãozita ali, na fronte escaldante do que lhe dera o ser, do mesmo modo que lhe ordenara já a entrada sorrateira e inquieta no quarto.
E foi talvez o gesto inocente e filial que fez correr novamente nas veias do Isaac o sangue da confiança. Sem confissão, vinte dias depois comia o caldo ao lume como se nada tivesse sido. E nada tinha sido realmente para toda a gente da terra, menos para ele, para o pequeno e para o Alma-Grande. Os outros passaram da agonia à morte e da morte à ressurreição, na inconsciência de quem passa do calor ao frio e do frio novamente ao calor. Só os três sabiam, de maneiras diversas, que o drama fora mais negro e profundo. O Isaac vira as garras da morte ao natural; o Alma-Grande olhara pela primeira vez a escuridão do seu poço; o garoto, esse, pressentira coisas que não podia clarificar ainda no pensamento.
Vagaroso, o tempo foi deslizando; e com ele apagara-se já de todo na lembrança da terra a doença do Isaac. Missa e Sabath.
Os três, porém, debruçavam-se sem descanso sobre o lago onde se reflectia a imagem negra do passado. O Isaac, cada vez mais dorido, olhava, olhava, e via a vingança; o Alma-Grande, cada vez mais culpado, olhava, olhava, e via o medo; o pequeno, inocente, via apenas a angústia de não entender. E os três formavam como que uma ilha de desespero no mar calmo da povoação. Não se falavam, fora do filho a pedir a bênção ao pai, do pai a dar-lha, e de uma saudação ambígua e monossilábica do Alma-Grande ao passar pelo Isaac. Mas traziam-se guardados uns aos outros, como se nenhum deles quisesse perder a hora em que, para a eternidade, varressem do céu das consciências a nuvem pesada que o toldava.
E esse momento, finalmente, chegou. Vinha o Alma-Grande de ver a filha e os netos, em Bobadela, quando o Isaac, que o seguia como um cão de fila, lhe saltou à estrada. Testemunhas, só Deus e o Abel, que, sem o pai suspeitar, o acompanhava também por toda a parte, e olhava a cena escondido atrás de um fragão.
- Não matarás... Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros caminhos, como o próprio Alma-Grande sabia.
- Não matarás...
O Isaac, porém, olhava o Alma-Grande com os mesmos olhos implacáveis que lhe vira nas horas de agonia.
- Não... Não... Mas o Isaac era o mais novo e o mais forte. E. quando o Alma-Grande foi a dar conta, estrebuchava no chão, de costas, com o pescoço apertado nas mãos do outro, e com a tábua do coração sob o peso infinito de um joelho.
- Não... Não...
O pequeno, do penedo, via a cara congestionada do Alma-Grande, e ouvia o esforço da respiração a forçar o garrote.
- Não... Possantes, inexoráveis, as tenazes iam apertando sempre. E, com mais um estertor apenas., estavam em paz os três. O Isaac tinha a sua vingança, o Alma-Grande já não sentia medo, e a criança compreendera, afinal.

Novos Contos da Montanha

«O abafador existiu até há bem poucos anos, e foi praticado no concelho de Pombal até final dos anos 50, a troco de 50 escudos. Era corriqueiro ouvir dizer aos mais velhos a frase "estava a sofrer, demos-lhe o abafa, foi um gesto de caridade".»