sábado, 21 de janeiro de 2012

UM OLHAR

«Os empregados da fábrica “X” foram assistidos pelos médicos ao tomarem conhecimento que tinham sido despedidos.»
rodapé na RTP1

As estatísticas, quando honestas, são um precioso auxílio para aferirmos a extensão do clima social, mas a sua glacial expressão nunca reflecte a profundidade do que pretende demonstrar.
O desemprego aumenta, o poder de compra diminui, as responsabilidades fixas abocanham a quase totalidade dos salários, quando existem e, é na alimentação que as restrições mais se fazem sentir. (Mais de metade das crianças do ensino básico de Lisboa sofrem de privações a nível alimentar. “Instituto de Apoio à Criança”).

Não é através dos comentadores de serviço, perorando sobre macroeconomia, que nos podemos aperceber da angústia sofrida pelos que protagonizam os dramas do dia a dia; é nos pequenos gestos que nos fazem fremir e transbordar de emoção que se vive e sente o que os números calam e os analistas escondem.

O peixeiro há já bastantes anos que estaciona a carrinha no mesmo local e nos mesmos dias da semana, a freguesia esperava-o e, ao arribar, o senhor Fernando, em grande azáfama, fazia os preparativos para iniciar o negócio.
Para evitar atropelos, os fregueses que iam chegando certificavam-se de quem era o último, aguardavam a sua vez, nalguns casos esperando uma boa meia hora.
O peixe, tal como agora, era fresco, os preços razoáveis, em relação a outros comerciantes, e a decisão dos clientes rápida.

À tecnocracia do discurso oficial ou às estatísticas dos seus departamentos, não podemos exigir que reparem na expressão de um olhar, espelho que reflecte todas as nossas emoções, da mais esfuziante alegria ao desgosto mais pungente. Os números são cegos, os governantes vesgos.
O senhor Fernando continua a chegar com a regularidade costumada, mas já não é esperado; calmamente abre as caixas do pescado, coloca os preços, olha em redor e aguarda os clientes. Cheguei alguns passos atrás de uma senhora, ficando o peixeiro a aguardar que se decidisse; atento, reparei que fixava, não a mercadoria mas os preços; semblante carregado, vacilante, assim se quedou durante algum tempo.
Ao reparar em mim, fez-me sinal de que me poderia servir, lembrando-lhe eu que havia chegado depois e que aguardaria a minha vez.

Eu sei, disse-me, mas faça favor. Estou a pensar.

Continuou a fixar os preços e pensava… relacionava o dinheiro de que dispunha e as bocas que lhe exigiam o sagrado sustento. Deduzi, e não me devia afastar muito da verdade. As estatísticas não revelam a angústia, nem mostram os pais que, à hora da refeição, se dão por satisfeitos para que os filhos tenham um pouco mais de sustento.
Observei-a melhor: olhava mas não via; dir-se-ia hipnotizada, bloqueada.
Num desabafo quase sussurro, um lamento, entendi: está tudo tão caro!…
Sentia-se que havia perdido a capacidade de se indignar, olhou em redor como que a pedir ajuda e, sem nada dizer, retirou-se cabisbaixa, caminhando, lentamente, sem aparente destino.

Olhámos-nos eu e o peixeiro, tentando encontrar palavras ou coragem para tecer qualquer comentário.
- Por este caminho não sei onde vamos parar! Exclamou num tom magoado.
- Ainda agora a procissão vai no adro, retorqui.

Subitamente, fomos sacudidos pela travagem brusca de um carro. O motorista blasfemava contra a senhora que ainda há pouco nos deixara e que, sem alterar o passo, continuou o seu caminho.
O caminho do futuro radioso que nos têm prometido e no qual os ingénuos ou tolos têm acreditado.

E ainda agora a procissão vai no adro!

2 comentários:

trepadeira disse...

Que mais dizer,está tudo no texto.
Só não está a revolta a angústia e a raiva que cresce como fogo e queima,abrasa.

Um abraço,
mário

Fernando Samuel disse...

Excelente texto.
E, de facto, ainda agora a procissão vai no adro.

Um abraço.