domingo, 18 de agosto de 2013

classe média e crise


FIM DE FÉRIAS
 (la rentrée)

“A desconfiança a todos os níveis e as dívidas que atingem limites assustadores fazem com que as pessoas cortem na alimentação e outros bens”.
Miguel Goulão

Um pedacito de lápis que os miúdos deixaram sobre a mesa, o espaço da página não impressa de um anúncio de luxo num jornal e o sobrolho carregado que não serviria para publicitar o prazer de estar em férias.

Contabilizar os compromissos a satisfazer ao regressar a casa é um exercício penoso mas necessário.

O jornal, o lápis, o homem e os números, números que, gemendo apreensões, vão escorrendo pelo papel.

Um gole de café requentado, um cigarro e mais cifrões (ou eurões?)/ que adicionava, lenta e penosamente, a outras parcelas, e outras e outras ainda, à pilha de algarismos que não parava de crescer.

Para descontrair, o “homem em férias”, displicente, folheou o jornal detendo-se, sem interesse, num ou noutro título: portagens, liberalização dos preços da electricidade e do gás, aumentos dos transportes colectivos e outras bagatelas que não cabiam no cesto do seu desinteresse; voava, ou pretendia planar, acima de preocupações tão comezinhas.

Vagueou o olhar pelo que o circundava, retendo-se numa garrafa de whisky, vazia dois ou três dias; empresta um certo estatuto ter um bom whisky em casa, de preferência bastante velho; é chique!
Mas… os números, sempre os números a fustigá-lo. O empréstimo feito ao banco, os juros dai decorrentes, contas que ficaram por saldar!

E a maldita crise!... A troika, os tratamentos de choque e o desnorteio que alastra como mancha de óleo. O desemprego, a instabilidade e o individualismo do salve-se quem puder e do mundo é dos espertos.

A medo abre o jornal na página fatal: “movimento bolsista”. Continua a pagar o dinheiro que pediu ao banco para comprar acções que estão ao preço do papel higiénico.

A euforia dos primeiros dias de pretenso repouso esfumou-se e, se o sol continuava, o relativo bem-estar fora de pouca dura, a realidade, aos poucos, impôs-se.

Férias, não são tempo livre; pressupõem disponibilidade de espírito, tranquilidade que, partindo do presente, não pode deixar de ter em conta o futuro, e o futuro era a garrafa vazia e, os meses de Setembro e Outubro, cheios de problemas, que alguns dias de desejado descanso vieram agravar.

Não havia tido em conta os imprevistos: amigos e conhecidos que se encontram, e não se pode deixar de acompanhar a bons restaurantes, contactos que se não devem perder porque ninguém sabe o dia de amanhã. E de compromisso em compromisso, esparrela em esparrela a carteira foi minguando.

Não se fazer encontrado em locais de referência, onde políticos mediáticos e seus cortesãos aquecem as suas influências, teria custos elevados.

A engrenagem dos favores é complexa e implacável. A troca de um sorriso, o esboço de um cumprimento, são mais-valias a não menosprezar, podem mais tarde servir de pretexto paratrocar impressões”, insinuar-se, mostrar-se disponível, em suma, tirar daí proveito: negociar favores! Os protagonistas são outros os favores mudaram de origem.

Colocar os filhos no ensino público, frequentar restaurantes modestos, levar a vida pacata do comum dos mortais são golpes rudes de suportar, geradores de incompreensões que se traduzem em desaguisados familiares e distúrbios psíquicos, dos quais, dificilmente, se libertam os que enveredam por caminhos escorregadios.

A pequena e média burguesia têm pés de barro e tenta, usando cordas sebosas, guindar-se ou confundir-se com os poderosos; exercício que os leva a cair, com frequência, na classe que sempre menosprezaram.

Insurgem-se contra os senhores que lhes alimentaram ilusões, culpabilizando, no entanto, os que no sopé da pirâmide lutam pelo pão de cada dia.

Nunca se olham ao espelho, o mal vem sempre dos outros. Desconhecem, no fulgor do efémero sucesso, que a instabilidade a que todos, absolutamente todos, estão sujeitos é uma constante, tão mais traumática, quanto mais alto se sonha subir. Para estesanalfabetos políticos” o capitalismo é alheio a tudo isto.

Classezinha de frustrados, híbrida, fragmentada e presunçosa. Coitada!

2 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Tão bem escrito, tão esclarecedor!!!

Um grande abraço.

Nozes Pires disse...

Faço minhas as palavras da Graciete. "classe média" é um tema que deveria merecer mais estudos críticos dos marxistas. Na actualidade é difícil aplicar critérios clássicos (aliás, Marx nunca definiu a pequena e média burguesia. É certo que ainda existem pequenas e médias empresas, conforme o nº de trabalhadores que exploram, etc. A sociologia dominante classifica as classes médias de acordo com os rendimentos, incluindo, portanto, as "camadas intermédias" classificadas pelos marxistas. Seja como for, no meu ensaio publicado pelo último nºda Revista Vértice defendo a tese de que a "escassez" vem trazer para o lado dos descontentes boa parte das "classes médias". Descontentamento que é preciso orientar para a formação de uma base social de apoio a um governo patriótico e de esquerda.