sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Os milhões

Os milhões

Restavam-lhe alguns cobres a tilintarem no fundo do bolso, cobres que não davam nem sequer para o tabaco. Encaminhou-se para onde pudesse preencher um boletim do euro-milhões, marcou as cruzinhas correspondentes ao dinheiro de que dispunha, deixando esse quase nada no vendedor de sonhos; arrecadou o documento com tal cuidado, tamanho desvelo, que dir-se-ia ter sido antecipadamente contemplado.

Os problemas que o atormentavam esvaíram-se num ápice, dando lugar à tranquilidade em que os bons sonhos são bálsamo e mestres. Que estranho!…

Assim, qual toque de magia, mais eficaz do que consultar o melhor dos psicanalistas, um minúsculo papelito deu-lhe tranquilidade e quase se sentiu feliz. Como era possível que um pequeno pedaço de papel exercesse tamanho bem-estar?

Balzac definiu a lotaria como sendo “o ópio da miséria”; Baudelaire referiu-se-lhe em “Os paraísos artificiais”. E ambos, o que não é de estranhar, definiram-na exemplarmente.

Quanto mais se nos apresenta difícil o presente, ou incerto o futuro o recurso ao “ópio” ou aos “paraísos artificiais” sobe vertiginosamente; é a fuga para não se sabe onde, nem interessa tão-pouco. É a evasão ao real que esmaga e para a qual não se encontra qualquer saída ao alcance dos meios de que se dispõe nem da força que esmorece.

Em casa, não diria que não tinha conseguido emprego e muito menos que havia gasto todo o pouco dinheiro que lhe restava. Não, não diria nada à mulher porque ela sonha com os pés assentes na terra e estava certo que não o acompanharia nos seus sonhos desfasados da vida; durante esses quatro dias guardaria o segredo e depois… só depois lhe faria a surpresa.

Uma neblina fria molhava-lhe o rosto e, ao contrário do habitual, agradava-lhe esse desconforto. A realidade que o esmagava era muito mais desconfortável e as cruzinhas com que assinalou os algarismos escolhidos, já nem se lembrava quais, aplanaram os escolhos deixando-o a planar. “Já que não consegui o emprego, deixem-me, pelo menos, sonhar, concedam-me estas férias de quatro dias e neste intervalo não necessitarei de antidepressivos que me têm mantido aparentemente normal.” Assim ia pensando.

O jogo da roleta, com o ouro à vista, é um relâmpago que não dá tempo para sonhar, ao passo que a lotaria oferece uma duração de cinco dias a esse magnifico clarão. Qual é, atualmente, a potência social que pode, por alguns euros, adormecer-vos face à realidade, mergulhando-vos nessa esperança mágica?

Semana após semana, o ciclo refaz-se, os sonhos radicam-se, há que os alimentar com algumas cruzes rabiscadas sem sentido; droga indispensável ao equilíbrio dos onírico-dependentes.

Entretanto, a realidade impõe-se, pesadelo omnipresente, plena de jogos obscuros e cartas marcadas pelos proprietários desta sociedade casino.

Os sonhos vendem-se bem
mas a realidade é acutilante

1 comentário:

Olinda disse...

A realidade ê de tal maneira acutilante,que me pergunto,se o direito ao sonho por pouco tempo que seja,nao darâ uma certa tranquilidade,mesmo que ilusôria.O jogo ,ê sempre hipotêtico.Penso que o jogador,no fundo,no fundo,sabe que nao lhe sai nada.Estou a falar do caso que acabei de ler.O jogador compulsivo,jâ entra noutros domînios.

Abraco