sábado, 8 de junho de 2019

Umberto Eco, Um serial exagerado?


Umberto Eco, Um serial exagerado?

Ondas curtas e longas do fascismo infiltradas nas democracias.


Ao ritmo a que os laboratórios de guerra psicológica elaboram as suas "matrizes ideológicas", a conferência que Umberto Eco deu em 1995 - no simpósio da Universidade de Columbia - parece coisa de hoje porque o tema possui o dom da vigência, da ubiquidade e da advertência: "Contra o fascismo". Eco sabia muito bem do que falava porque foi amamentado pelas "vias lácteas" do primeiro fascismo, do original, do que nutriu, esmeradamente, as juventudes do seu tempo (e do atual). Dizem alguns, que exagerava.

Eco interessou-se especialmente em explicar, e explicar-se, o conceito de "fascismo", na sua amplitude e profundidade, para o não deixar escapar e ser capaz de alertar sobre os mil disfarces desenvolvidos para se projetar para futuro e camuflar essa fase da ideologia da classe dominante que expressa, em simultâneo, o medo burguês, mas com arrogância criminosa. Intolerância e ódio disfarçado de pensamento civilizador para seres "superiores". Um modelo ideológico opressor, de "novo cunho" capaz de se atualizar permanentemente sem deixar de ser "velha tradição" e fatalidade repressora. Modelo opressor com muitos rostos (e nomes) numa mesma "substância" imutável. E, se isso não bastasse, com laços internacionais, mas sem perder seus vínculos locais.

Eco, dizem que exagerou, propôs-se desnudar a estrutura íntima do fascismo e seus clones. Acabou por lhe chamar "uro-fascismo", ou seja, o fascismo eterno. Construiu uma espécie de "casa dos espelhos" culturais aproveitando o seu reflexo sobre a realidade em categorias tais como: 1) o culto da tradição e a investigação de uma hipotética verdade primitiva; 2) a negação da modernidade e do racionalismo; 3) empirismo dogmático; 4) a satanização do pensamento crítico; 5) o repúdio da diferença; 6) o chauvinismo e a xenofobia; 7) a lógica da perseguição permanente; 8) desprezo pela fraqueza; 9) o amor pelo machismo... e algumas outras mónadas mais, coroadas pela ideia de que o fascismo deve ter a habilidade de se desenvolver em permanência, para se adaptar "aos tempos" e travestir-se na semântica, nas formas e nas inter-relações sociais como um baluarte histórico capaz de possuir, não um uniforme único, mas todos que convenha à ocasião.

Umberto Eco, ao colocar um interesse enfático no aspeto moral, ideológico e psicológico do fascismo, parece não ter lido Trotsky, que explicou de maneira admirável a base económica, material e concreta do fascismo, na sua pachanga desmoralizadora e saqueador da classe trabalhadora dos setores proletários e pequeno-burgueses. Alguns deles fiéis seguidores do fascismo, especialmente acorrentados pelas burocracias dirigentes. Até a data. Em primeiríssimo lugar, o fascismo italiano. Parece ter pouco interesse para Eco interrogar as virtudes guerreiras dos povos contra o fascismo, ele observou que o essencial estava no seu "sentido", como se se tratasse principalmente de um problema moral, mas incluso, nesta espécie de memória adoçada contra o fascismo, parece haver uma contradição cujo resultado deriva em debilitar a democracia para a aprovação dos fascistas mais novos. Sem exagerar.

Mas o que é realmente valioso, talvez, no texto de Eco, está na sua advertência contra a vigência do fascismo e a sua multiplicidade de disfarces inoculados nas cabeças de todo o mundo, por mais que certo pudor esteja disposta a rejeitá-lo e repudiá-lo. No texto "Contra o Fascismo", Eco consegue destacar as vozes que chama a combater permanentemente o fascismo. Não explica um método único além de certa semiótica, mas abre espaço para lembrar, por exemplo, a proposta de Trotsky de combater o fascismo numa frente comum de trabalhadores convocando milhões de pessoas dispostas a despir o "uro-fascismo" e o maior número de suas "mutações" invisíveis na vida cotidiana. E, na prática, milhões de pessoas hoje estão dispostas, por exemplo, a votar pelo fascismo nas suas urnas sem ter em conta a realidade que as sufoca, levados por um "síndrome de Estocolmo" eleitoral e sentindo um certo prazer mórbido de exercer o poder de votar com irresponsabilidade desinformada. Só porque é uma moda dos "media". Estamos exagerando?

Na democracia burguesa, sequestrada pelas agências de publicidade e pelas empresas de sondagens, rende-se culto a um conjunto complexo de flashes fascistas que começam por reduzir tudo à "simpatia" da mercadoria chamada candidato. Fizeram da mentira em um atrativo bumerangue que permite prometer as mais descabeladas e improváveis tarefas ​​de "gestão governativa", sabendo que farão exatamente o contrário. Ou, nada farão. Nalguns processos eleitorais (Brasil, Argentina, Espanha, Itália, EUA, Colômbia...) dominados pelo despotismo ou fanatismo, coagula estentoreamente uma nebulosa fascista impúdica em que os candidatos ou candidatas, adoram a tecnologia para se fazerem “populares” ante as massas, enquanto recitam, com orgulho amnésico, carradas de sucessos empresariais nos quais a vida se protagoniza como num episódio de reality-show.

Falam de liberdade de expressão, de imprensa, de associação política apenas para os perseguir e condenar. O Ur-Fascismo rodeia-nos, às vezes em trajos civis e com as mais diversas aparências ou camuflados como entretenimentos inocentes. O nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador a cada uma das suas "novas" formas, todos os dias, em todos os lugares do mundo. Seja entre linhas de música, fotos de paisagem, orações ou tele-series. Seja no penteado e no vestuário, nas teorias e nos métodos científicos, em horóscopos ou nas notícias esportivas. Seja em tatuagens, em frases familiares, em livros para jovens ou para a infância... seja nas "histórias de amor" ou nas "boas intenções". Há que ler o texto de Eco, mesmo que seja apenas para ver o quanto das suas declarações estão exagerando os factos. Sem exagerar.

1 comentário:

Olinda disse...

Um alerta para um perigo que hoje é planetário,e não se apresenta com um padrão clássico e comum,o que confunde os cidadãos mais ingénuos,habituados a associar o fascismo a hitler e a mussolini.Um texto muito elucidativo,como é hábito de Buen-Abade.Abraço