segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A democracia que lhes interessa

CARLOS MATOS GOMES

 LIBERDADE DE ESCOLHA, RAZÃO E DEMAGOGIA

A liberdade de escolha constituiu o elemento a partir do qual os debates tradicionais sobre a liberdade e a necessidade começaram na Grécia há mais de dois mil e quinhentos anos. O problema da liberdade de escolha reside na contradição resultante do facto de podermos decidir contra o bem essencial, transformando a liberdade em servidão. Isso acontece porque a liberdade pode resumir-se à escolha do conteúdo, das normas e dos valores a partir dos quais a nossa natureza essencial, incluindo a nossa liberdade, se expressa. A liberdade pode agir contra a liberdade, entregando-nos à servidão. E esse é o projeto das “democracias iliberais”, ou formais que nos está a ser proposto como paradigma da democracia. Votais! — o resto está por conta de outrem, de nós, os vossos representantes. Este tipo de “democracia” é o meio ideal de criação e desenvolvimento dos demagogos e da demagogia. Dos abutres da liberdade, dos que comem o interior dos corpos, os órgãos vitais que garantem a liberdade e deixam o esqueleto, que continuam a designar por democracia. Não é, como o cavername de um barco não é um barco e não navega.

O que está a ser imposto como “democracia” é a apropriação do direito de voto por uma elite. Essa velha perversão aproveita o que, à falta de melhor, pode ser traduzida pela palavra alemã de Angst — medo, horror, angústia de confrontar possibilidades e desejos com a realidade, de medo de usar a liberdade, por isso os temerosos transferem a responsabilidade para outros que lhe surgem como mágicos realizadores de felicidade. Esta transferência de responsabilidade pelo uso da liberdade contradiz a natureza essencial do ser humano, de ser livre, condu-lo à servidão, mas vendida a liberdade, já não há regresso, o demagogo está aos comandos da nossa vida e não mais nos ouvirá.

A liberdade humana é o risco humano. A possibilidade de ultrapassar uma qualquer situação implica a possibilidade de não o conseguir. Mas a delegação da liberdade pode tornar-se servidão se for atribuída a quem corrompa os princípios e os meios “democráticos” para se apropriar dela. As campanhas eleitorais servem também e cada vez mais como legitimações desse tipo de corruptos que surgem a par dos que cumprem regras básicas de conquistar o voto. Isso acontece porque o modelo “democrático” imposto pelo poder dominante para ultrapassar a universalização do voto é o de escolher “quem” e não escolher “o quê”. A personalização (fulanização) das campanhas e das candidaturas, o empolamento a “casos” e revelações de intimidades servem o propósito de atrair as atenções para o quem e não para o quê.

Os debates-espectáculo que nos são servidos como ração democrática e integral querem que vejamos lutadores em competição e não os empresários e os que manipulam os resultados. Os espectáculos-debate são um falso combate encenado para dar a vitória antecipada aos demagogos, aqueles que melhor dominam a arte de conduzir habilmente as pessoas ao objetivo desejado, utilizando os seus conceitos de bem, mesmo quando lhes são contrários. Aos que corrompem a essência da democracia, de o poder ser constitucionalmente detido pelo povo, para se apropriarem dele apelando ao menor denominador comum, propondo ações prontas a servir para enfrentar situações e crises complexas, enquanto acusam oponentes de moderados, de fracos e de corruptos, segundo as conveniências do momento.

O êxito dos demagogos assenta na cobardia. Os demagogos orgulham-se da sua arte de arrastar cobardes. Os grandes meios de manipulação elegem e legitimam a cobardia como um valor cívico. A discussão da pré-campanha tem sido centrada no lugar a dar num futuro governo aos demagogos que têm a arte de arrastar cobardes.

A adesão de grandes massas aos demagogos é antiga, é uma servidão trágica que ao longo da história tem levado a situações de brutais e irracionais ruturas, em que a humanidade se pode reduzir à situação do indivíduo isolado à beira do abismo, insignificante e incapaz de se aperceber da ameaça para ele próprio e da aniquilação ao seu redor. Julgo ter sido essa a situação de muitos alemães durante o nazismo e de ser essa a situação de muitos israelitas perante o genocídio de palestinianos. Duas situações em que foram os cidadãos que elegeram, que votaram os que os governaram e governam, que participaram em comícios, em ações de esclarecimento, que ouviram ou viram debates.

O que podem fazer os que sentem a angústia da servidão para evitar a tragédia que anteveem como inevitável resultado da demagogia nas horríveis experiências do passado? Existe um valor que tem sido esquecido ou muito aviltado: a coragem e não existe nenhum ser mais corajoso do que o ser humano, porque mesmo quando em condição de servidão não perde a liberdade se mantiver a sua dignidade.

A demagogia é um atentado à dignidade humana e o mais reles e eficaz argumento dos demagogos é o aproveitamento do sentimento de insegurança, que eles próprios criam e que prometem resolver a troco da integração no seu bando. Exploram a solidão e a fragilidade do “homem só”, do ser só, perante os predadores e rodeado de necrófagos. Uma grande parte das criações da civilização humana pode ser compreendida em termos de “busca de segurança”. A utilização da insegurança como argumento encontra-se hoje no primeiro plano da panóplia de armas dos demagogos, insegurança física, política, económica e até por falta de sentido na vida.

Outro dos sentimentos explorados pelos demagogos é o do desespero, entendido como o conflito entre a vontade de se manter a si mesmo e o de se perder a si mesmo, o desejo, ou a vontade de obter o mundo completo (a realização), e o desejo ou a vontade de se acolher à servidão, abdicando da liberdade.

As ações a que assistimos durante uma campanha eleitoral são a repetição do negócio da compra e venda da alma a troco de promessas, as encenações tecnológicas nas televisões não alteram o essencial do logro do mito de Fausto, apenas o embrulham e o disfarçam com luzes faiscantes. O demagogo é, no fundo, uma velha máquina de picar carne que transforma em pasta o cérebro de quem acredita que ele lhe vai fornecer uma salsicha.

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1 comentário:

Olinda disse...

Textos que vão iluminando estes tempos obscuros que pretendem alienar os cidadãos com demagogia e mentiras.Abraço