domingo, 3 de abril de 2016

A câmara não é o olhar

Imagem, logo existe.
 
A câmara não é o olhar

Clichês à parte, há momentos em que é necessário recordar que o modo como as “câmaras” mostram o mundo são decisões planificadas por alguém que, no seu modo de ver, a partir dos seus interesses e limitações, quer que vejamos. O mundo está infestado de câmaras que servem múltiplas finalidades. Câmaras de televisão, de cinema, de fotografia, de vigilância, de espionagem… câmaras nos estúdios de filmagem, em “caixas automáticas” nas avenidas, em gravatas, em lápis… câmaras para espetáculo e de controle. A realidade fragmentada pelo orifício de uma câmara.

Quase que não existe atividade individual ou coletiva em que as câmaras não estejam presentes. As câmaras consolidaram uma cultura, espécie de praga pela sua presença e pelo que “mostram”, e que sistematicamente impõem um modo de conhecimento determinado pelo “enquadramento”, o movimento, a profundidade, a nitidez ou o repouso do enfoque do operador de câmara ou do fotógrafo. É a ditadura do modo de ver, uma imposição que dirige o olhar para uma forma de ver, de pensar e decidir o que deve ser visível, como se deve ver e com que determinações de mercado, de classe ou de vigilância. O poder controlando os olhos.

O olhar próprio das câmaras nos seus “enquadramentos” é muito diferente daquele com o qual contempla a realidade. O olhar é mais amplo, mais fundo, mais colorido e mais direto. Mais tátil. É uma experiência que não necessita de intermediários nem de segmentações. Olhar é um processo do conhecimento, da sobrevivência, do próprio desenvolvimento do indivíduo e do conjunto das suas relações sociais. É muito mais que uma função fisiológica. Olha-se em amplitude e em detalhe num entrelaçar de funções complexas que interagem entre o objetivo e o subjetivo.


Isto implica, entre milhares de coisas, o desenvolvimento necessário de uma ética do olhar, ou seja, centrar a investigação científica no comportamento dos que escolhem e exibem os fragmentos da realidade que elegem e de que são responsáveis. Expor o que a câmara vê não é uma dádiva, não é um presente filantrópico nem dos céus. Salvo casos excecionais uma câmara não grava por si mesma nada do que mostra. Necessita que alguém a maneje, a instale e determine o campo visual que lhe convém. E por trás de cada campo visual eleito com os seus “enquadramentos” e “recolhas de imagens”, quem regista os fragmentos da realidade assume a responsabilidade não inocente e que é sempre ideológica, que tem carga ética e estética. E o problema multiplica-se como se multiplicam os milhões de câmaras que se acendem noite e dia para constituir um universo fragmentado com “enquadramentos” visuais. Merece uma referência especial, pelo menos uma menção, a manipulação descarada da recolha de imagens para que se vejam ou se invisibilizem os protestos sociais e a situação objetiva das batalhas territoriais.

O alfabeto visual dos “close up” (primeiros planos) ou as panorâmicas com todos os seus espaços e gradações é o alfabeto de um discurso da imagem que nada tem de inocente nem de inócuo. É o desenrolar de uma técnica de intervenção sobre a realidade e sobre as consciências, não só com o poder da fragmentação como também com o poder da articulação de fragmentos fazendo-os passar como um todo. E isso, com frequência, parece e confunde-se com a mentira. Nada de novo até aqui.

A fase mais perigosa, ao reduzir o olhar para o visível num enfoque, é a hipótese alienante de imaginar que se cegam os povos quando se apagam as câmaras. É a moralidade subterrânea que grita, aos quatro ventos, que só existes quando alguém te faz visível, quando te enquadra e te separa da realidade com a objetiva de uma câmara. É um exagero? É o culminar de um processo de alienação.

Também é bom explicar que não se trata de promover negações nem vinganças contra o desenvolvimento tecnológico de instrumentos para registos visuais. É impossível negar o significado da contribuição para a ciência, para as artes, para a política e para a educação (por exemplo). É impossível ignorar a contribuição que o conhecimento humano tem adquirido com o aperfeiçoamento de câmaras em locais onde ninguém ou muito poucos chegam no globo terreste ou no extra-terrestre.

O que se devia submeter a debate filosófico, ético, epistemológico e político é essa forma de uso que fez das câmaras, voluntária ou involuntariamente, uma fonte de conhecimento, uma didática da realidade, uma ponte de interação com princípios que nunca se comportaram como um quebra-cabeças, que jamais conseguirão substituir o todo  pela dialética de um conjunto de inter-relações que não podem ser satisfeitas só com registos fragmentados a que está condenada por definição uma câmara. Só a inteligência humana, por ser social, é capaz de completar a paisagem, sintetizando e universalizando a sua relação com a matéria concreta e as suas experiências transformadoras. E isso não está ao alcance de nenhuma câmara. E ainda bem.

Dr. Fernando Buen Abad Domínguez
Universidad de la Filosofía

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