segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Texto-sofrimento, marca-d’água de uma grande escritora



 Está em Couto do Mosteiro; Santa Comba Dão.
7 h ·
Epipostáfio

A minha infância é um esgoto atravancado de detritos. A minha infância tem cheiro a fumo nos cabelos e cinzas debaixo das unhas. Um cansaço granítico, uma velhice súbita nos pés. Não sei se estou dentro ou fora, se saí de ti, se entrei em ti, desconheço-te tão bem quanto te conheço. Perco-me cá dentro, entre restos, sobras, remanescências vãs, numa casa sem bússola, mas se conseguisse subir ao sótão talvez avistasse de lá a serra e a neve no cume, e reconhecia-te outra vez. Como se mantem a vista se não existe janela para me debruçar… Como me agarro ao corrimão de uma escada que já não há… Como avanço pelo corredor de sustos e escuridão, se ele está a céu aberto e não tem princípio só fim… Como caminho nesta inexistência de chão, feita de vidros, pedras trituradas e pregos - foi o que restou... Como se faz para soterrar algo que me inclui… Como me desvio para atalhos se todas as minhas correntes sanguíneas vão ter aí… Tenho de reportar a minha infância ardida e dão-me um formulário da Protecção Civil. Tenho de preservar a memória dos meus avós, dos avós dos meus avós, e pedem-me apólices, metros quadrados e cadernetas prediais. Eu era capaz de as encontrar, senhor vereador, de certeza na segunda gaveta da secretária do meu avô, onde ele guardava os papéis importantes. No escritório onde tudo se manteve, com o passar dos séculos, no seu devido lugar. Inalterável, como num museu. Indiferente aos ruídos do mundo cá de fora, a duas guerras mundiais, um holocausto, uma bomba nuclear, uma revolução de Outubro, outra de Abril, primaveras árabes, tempestades nos desertos, violações em massa na Macedónia, o erguer e o derrube de torres gémeas, o espelho que ocupava a parede nunca deixou de mirar gerações que lhe passavam em fila, o tio-bisavô de bigodinho, na moldura bordada a pérolas, continua a lançar um olhar de viés a estes descendentes que lhe esqueceram o nome, o pisa-papéis alinhado com a caneta de aparo e cubinhos de vidro e prata de tinta seca, a menina de cinco olhos com que se espancavam, selváticos, os meninos, o busto de Chopin, a santa de oratório, esculpida em marfim, com as mãos decepadas pelos franceses… A saleta de costura com a salamandra e as fotos de casamentos, muito se casou nesta família…Tudo no seu devido lugar. Como num museu, mas sem as etiquetas. Nenhum óbito a reportar, graças a Deus, senhor vereador, e no entanto, uma multidão insepulta. Não lhe imagino a agonia, e ninguém sabe, ninguém viu. Neste andar de cego, os passos não me obedecem, faltam-me as esquinas, os pontos de referência, os desvãos, as passadeiras, as maçanetas de portas ausentes … Como lhe hei-de explicar isto, senhor presidente de Junta, o silêncio de uma casa carbonizada. Quanto tempo demoram a regressar os pássaros que fazem ninho nos beirais desaparecidos … E os ratos que nos infernizavam as noites com a ansiedade roedora tão bem-vindos, afinal… E os cardumes de moscas que entravam por uma janela de verão e percorriam as funduras ondulantes dos corredores … E o cheiro enjoativo a vinho da adega, sempre gélida, onde não entrava fio de luz, agora esventrada e inundada de sol intruso. Uma casa tão misteriosa e solene, tão encantadora e assustadora, tão vergada pelo tempo, agora uma cratera sem mistério, óbvia, nua, escancarada, despudorada… O enxovalho de se revelar nas entranhas, o indecoro de canalizações retorcidas, a injúria do metal fundente vergado à vilania da fornalha, a lama peçonhenta, de cinzas e chuva irónica, que larga nas bermas e vai descendo lenta pela ladeira. Vê como sangra, senhor presidente de Junta, como se derrama em líquido lamento, solitário e mudo. Esvai-se e ninguém que saber, ninguém tem compaixão por cascalhos sem nexo nem valor. O declínio e a dissolução desagradam à vista, embaraçam a freguesia, desfeiam paisagem. A perdição dos outro incomoda as consciências. Nenhum óbito a declarar, graças a Deus, ninguém, nada, nem um gato aflito esquecido dentro de portas, nem uma ovelha, nem uma galinha… Graças a Deus, apenas um pedaço de existência que se foi para sempre.



1 comentário:

Olinda disse...

Simplesmente genial!Abraço