terça-feira, 28 de abril de 2020

O paraíso neoliberal

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António Santos  23-4-2020

«As filas de carros para os bancos alimentares estendem-se ao longo de dezenas de quilómetros. Só aqui, no condado de Los Angeles, 1,3 milhões de pessoas perderam o trabalho no último mês». As «cenas distópicas» da Califórnia, garante Charles Xu, responsável da União dos Inquilinos de Pasadena, nos arredores de LA, «espelham a crise da classe trabalhadora no quadro nacional».

Em apenas um mês, a pandemia atirou para o desemprego mais de 20 milhões de estado-unidenses mas são muitos mais os que podem perder a casa. «31 por cento dos inquilinos dos EUA já não conseguem pagar a renda de Abril. Estes números vão crescer nos próximos meses», explica Charles. Não se trata de futurologia: há três anos que o número de pessoas sem casa crescia paulatinamente nos EUA mas o pior, garante, virá depois do estado de emergência, quando terminarem as moratórias aos despejos: «a maioria das moratórias só se aplica a inquilinos que consigam provar que perderam rendimentos por causa da pandemia. Obrigam-nos a pagar a totalidade das rendas em atraso num prazo de 6 a 12 meses. Isto vai colocar milhões de trabalhadores sob o jugo de uma dívida esmagadora no meio da pior recessão desde os anos 30. Vai gerar ondas de despejos».

A comparação com os anos 30 é certeira. Em «As Vinhas da Ira», Steinbeck já descreve essa Califórnia que agora regressa: «Os inquilinos (…) eram também expulsos. E novas ondas estavam a caminho, novas ondas de espoliados e de gente despejada das suas casas, de coração endurecido, vorazes e perigosos». 

Como nos anos 30, perder o trabalho pode querer dizer perder a vida. «Para a vasta maioria dos trabalhadores dos EUA, quando se fica desempregado fica-se sem seguro de saúde. Estima-se que, nas próximas semanas, 35 milhões de americanos percam o acesso a cuidados de saúde», explica Charles.

Mas nem tudo são más notícias. «Estamos a assistir a uma incrível escalada na luta dos enfermeiros, dos auxiliares de acção médica, dos trabalhadores à jorna, dos auxiliares dos lares, dos trabalhadores com vínculos precários como na Amazon e na Instacart, dos imigrantes e dos milhões encarcerados por este Estado policial», assegura Charles. Faz parte dessa escalada a União de Inquilinos de Pasadena, que tem promovido protestos, ocupações de casas abandonadas do Estado e greves de renda em torno de três reivindicações: o fim dos despejos; o cancelamento das rendas durante a pandemia e a ocupação dos quartos de hotel e casas do Estado durante a pandemia. «A crise veio tornar mais claro do que nunca que o nosso trabalho é a fonte de toda a riqueza, que devia ser, como na letra da canção Solidariedade para Sempre, “nossa para dominar e para possuir”», conclui.

Da saúde à habitação, a pandemia deixou a descoberto a natureza predatória do capitalismo. Em Los Angeles, o condado dos EUA onde mais sem-abrigo dormem fisicamente nas ruas, o número de pessoas sem tecto explodiu, em menos de um mês, de 58 mil para 80 mil. Na infame Skid Row de LA, uma pequena cidade de tendas insalubres, a maioria dos moradores são mulheres e crianças. Se Fidel se podia orgulhar de recordar ao mundo que dos 100 milhões de crianças que esta noite dormirão nas ruas, nenhuma é cubana, era só justo que Trump morresse fulminado de vergonha, se tal coisa tivesse ou se ela matasse, porque desse exército mundial de meninos e meninas, quase dois milhões são estado-unidenses.

1 comentário:

Olinda disse...

Uma sociedade completamente desumanizada,egoísta e sem sentido de classe.Um dos maiores crimes que o poder norte-americano causou ao seu povo foi o de responsabilizá-lo pelo seu fracasso e roubar-lhe a capacidade de reflexão.Abraço