sábado, 12 de agosto de 2023

“Os imprescindíveis “

 Sindicalista revolucionário e poeta (1864-1914)

A REVOLUÇÃO SOCIAL

I

-- De rojo, colando o ouvido ao solo arenoso, o selvagem escuta os passos perseguidores que ainda vêm longe…

-- Quem, mais prevenido, pusesse a concha da orelha em contacto com o fremir do subsolo, --- que é como quem dissesse: a vida subterrânea das ideias que se iniciam --- havia de sentir, há bons anos já, que alguma cousa, fenomenalmente extraordinária, estava a crescer e a engrossar no misterioso útero em que se germinam todas as grandes causas e todas as grandes transformações…

-- O homem civilizado, no meio da complexidade e atordoamento da sua existência, distraído e confundido com o Ruido com que ele próprio fez a vida, tal qual está, cheia de violência e de exigências infinitas; que é obra sua, e com que orgulhosamente se envaidece e ao mesmo tempo tiranicamente se martiriza a si mesmo; o homem culto parece estar inferior ao selvagem quanto a aperceber o que se encontra a mais de um palmo adiante… do seu nariz investigador.

Com uma instrução cultural que lhe forneceu lentes de poderosíssimo alcance e conhecimentos profundos e transcendentes; sabedor da História e de histórias, que são rosários de exemplos e de escarmentadoras lições; munido de estatísticas, economias-políticas, e de tantas outras ciências e filosofias de cifras e orçamentos; ao homem culto de hoje parece ainda surpreende-lo uma crise séria, seja de carestia seja de abundância, uma greve geral, um movimento insurrecional qualquer – simples mexer de ombros do colosso… -- como poderia surpreender-nos uma navalha subitamente jogada de uma esquina sem luz…

   Porque, no fim de contas, a atitude ainda em geral subsistente, nos indivíduos como nos estados, essa atitude de quase total alheamento e indiferença das classes que estão bem perante o mal-estar das restantes, cada vez mais cavado e mais fundamente torvo e iniquo, não obedece a um qualquer sistema ou processo de combatividade; não significa estritamente um fechar de olhos consciente de quem não quer ver desgraças, ou de quem não está para se ralar, num lazaronismo de barriga cheia…

   Nesta atitude há também certamente muito de imbecilidade e de vista curta – de quem não sabe aperceber a tormenta, de quem não calcula a força fermentadora que existe nos preparos, nos elementos, que já há muito se vêm acumulando, coerentemente, logicamente, mais principalmente por vezes pela velocidade adquirida, mas sempre com a lógica fatal de todos os grandes factos históricos. Movimento que escolas e partidos e publicismos não engendram e combinam – o movimento explicado, natural, de todas as revoluções e transformações geológicas como políticas e sociais.

   Ao que parece, a Sociedade constituída mal chegou a colar o ouvido ao solo em fermentação, ou, se o colou, não pôde ou não soube medir-lhe a colossal grandeza…

    Não se explica de outra forma, como não se explicaria a passividade de um inquilino dormindo docemente sobre uma abóboda, sob a qual todo um depósito de materiais explosivos começasse a estourar em pirotecnias trágicas…

-- Porque já não é precisamente um simples fermento de rebelião, facilmente apagável à primeira investida; não é uma singela marcha de um exército, embora formidável, meio em arroubos ingénuos de festa, meio em pé de guerra brava, que avança e faz tremer o solo. É Vesúvio que começou já a sua erupção, de goelas escancaradas vomitando fogo e entoando um sabbat de extermínio.

Retratado por Tomás Leal da Câmara

Paulino de Oliveira



1 comentário:

Olinda disse...

O princípio do século passado beneficiou do aparecimento de muitos imprescindíveis que tornaram possível as grandes transformações sociais e políticas do século XX. Abraço