segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A face oculta do nosso vocabulário

“E quando os vejo continuar no officio illesos, não posso deixar de o atribuir à destreza de sua arte, que os livra até da justiça mais vigilante, deslumbrando-a por mil modos, ou obrigando-a que os largue, e os tolere; porque até para isso têm os ladrões arte.”

Arte de Furtar” (1742)




Por ser necessário, e os acontecimentos assim o exigirem, vou reeditar o meu glossário.


Glossário I


Com uma cultura tão rica na “Arte de Furtar”, cultura que os nossos antepassados souberam preservar e que o nosso dia-a-dia não decepciona, o vocabulário que nesta actividade, tão abrangente, surge nos media é de uma pobreza confrangedora.

Roubam-se tostões, desviam-se milhões; este amanhou-se, aquele desfalcou, aqueloutro abotoou-se. Sempre a mesma lenga-lenga. Bem contados, não vão além de escassas dezenas os termos usados na mais brilhante e lucrativa actividade no nosso país.

Preocupado com este hiato cultural, crente e ufano de contribuir para que nos possamos entender muito melhor neste negócio em galopante expansão, que é o gamanço, fui à cata de palavras que, através dos séculos, a nossa desonestidade fabricou e que o presente não desdenha, códigos que abrangem todas as classes e que, contradição das contradições, se aplicam na sua quase totalidade aos mais espoliados.

O safe-se quem puder reflecte o sistema quepelo nome de neoliberalismo, monstruosa ave de rapina que vai deixando o planeta exangue, devorando o Mundo e abrindo o caminho ao saque generalizado.

É tempo de engendrar novos termos e fazer reviver, pelo menos, os cerca de trezentos que a preguiça ou a rotina mantêm sepultados no esquecimento, hoje que a sede do lucro imediato torna os bolsos insaciáveis e o pudor, rechaçado, não sabe como e onde se refugiar.


Vamos a isto; é tempo de nos ilustrarmos:


Abafação é furto, abafador a pessoa que não deixa seguir o livre curso de um processo; o que encobre; ladrão e abafar ou albafar a acção. Abarbatar e abotoar-se é deitar mão do alheio e, em calão, o achatar, assim como afiançar, é simplesmente roubar. Afanar é da gíria - e é giro. Enquanto o agadanhador surripia, agadanhar é lançar o gadanho, tirar à força, tal como agafanhar. Alapardar é apossar-se do que pertence a outrem ou seja locupletar-se ilegalmente. O alcance tem nobreza, é mais para pessoa fina, não tem a ver com a plebe, pela delicadeza do termo, não está longe da alicantina, cheia de astúcia e manha. Aliviar é coisa de carteirista. Também sinónimo de roubo, anexar é termo abrangente, mais próximo do apoderar-se, apossar-se, apropriar-se, enquanto que apanhar alguém com a boca na botija, sendo também roubar, é termo frouxo. Arrancar, arrebanhar, arrebatar, arrepanhar são palavras fortes, principalmente quando colocadas ao lado do assenhorear-se, expressão delicada, punhos de renda, com classe.

Bater a carteira é roubar às ocultas a carteira do bolso de outrem, mas, bater é, no Brasil, o nosso aliviar, tal como buscar tem o busco como autor. Ao bifar, furta-se disfarçadamente. O borlão, borlador ou burlista exerce a arte de burlar, obviamente. Mas deitar a mão a… é benzer.

Ao capiangar, furta-se com destreza, sendo o capiango um ladrão astuto, o cafunge e o camafouje são gatunos, gente vil. Captar, faz-se com astúcia. Cardanho ou cardar é roubo na área do palmar, mas catar e catrafilar fazem parte do jargão do choro, larápio sem estatuto. Comer é espoliar, saquear, e consumir iludir. O palavrão, concussão, muito em uso, é específico para o funcionalismo público, uma honra para alguns. Corte é roubo, acção de cortar-se ou apropriar-se de coisa alheia. E para terminar a terceira letra do alfabeto, ficamos com cresta e crestar que se aplicam ao desfalque e ao despojar.


Para bem da nossa cultura, para que nos possamos entender falando e escrevendo sobre matéria tão actual e importante, escreva-nos se desejar enriquecer o nosso vocabulário.


Até ao próximo glossário (II).



1 comentário:

Meg disse...

Meu caro Cid,

Mas isto é saborosíssimo, e eu uma grande ignorante, há umas quantas palavras que ignorava completamente.
Mas como te cou "roubar" rste texto para o meu arquivo, vou ter todo o tempo para o estudar e, quem sabe, se mo permitires, publicar um dia destes, lá mais para a frente... naquele lugar que te indiquei há pouco.
Pode ser?

(ladrão que rouba a ladrão... ahahah)

Um abraço