“Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.”
Demogorgon – Álvaro de Campos
Uma manhã soalheira, um dia como qualquer outro na capital de um país que de seu pouco mais tem que a bandeira; mas havia sol, esse que quando nasce, dizem ser para todos. Dizem…
Encontrava-me numa das ruas que vai desembocar no Marquês de Pombal, artéria movimentada, invadida por escritórios, e com a correspondente densidade demográfica daí decorrente.
Entrei no café, aproximei-me do balcão e, quando me preparava para encomendar a rotineira bica, a senhora a quem me ia dirigir soltava um profundo suspiro que mais se afirmava como lamento.
Respondendo à interrogação do meu olhar com um sorriso triste, indicou as mesas vazias e, como que a pedir desculpa, exclamou: é isto!
“As despesas fixas vão aumentando, a concorrência é enorme, a clientela escasseia, de dia para dia, e a que ainda aparece vem reduzindo os gastos.”
E continuou:
“Neste edifício a maior parte dos escritórios fecharam; e nos que restam quase todo o pessoal está a prazo, e com os baixos salários de que usufruem, a bica habitual torna-se num luxo.”
Já não era a justificação do suspiro, nem parecia que se me dirigisse, as frases iam saindo como um lamento ou lamúria ou talvez desabafo.
“Tinha quatro empregadas, agora só tenho duas, e são imigrantes. Aceitam salários mais baixos. Compreende?...”
De forma desajeitada esbocei um: É pena… a vossa classe, quando se encontrava um pouco mais desafogada, insurgia-se contra as greves, achava que os trabalhadores estavam sempre a exigir melhores vencimentos, mais segurança e… não pensaram que são os trabalhadores, que têm o salário assegurado, os vossos principais clientes.
Os grandes senhores, os que ganham milhares de contos por mês, não é aqui que vêm tomar o pequeno-almoço, comer um bolo, beber um café. A vossa prosperidade depende totalmente do bem-estar da classe média, que também está sendo espoliada de direitos, direitos que foram adquiridos por todos aqueles que nada mais possuem que a sua força de trabalho.
Nunca pensou nisto, pois não?
A senhora fixava-me com um olhar vago, não sei se concordando comigo se continuando a pensar no negócio que tantas preocupações lhe causava.
Mais um suspiro e num murmúrio desabafou: “investi aqui as minhas últimas economias e já não tenho idade para encontrar trabalho. Nós os pequeninos somos esmagados como formigas, isto está bom é para os grandes, os muito grandes.”
E por aqui nos ficámos.
Um outro comerciante, sujeito inteligente, depois de me servir e antes que eu saísse, procurou fazer conversa, detendo-me durante algum tempo no estabelecimento, e dada a convergência de pontos de vista acabou por me confessar: procuro entreter os clientes para manter a casa composta.
“Um estabelecimento vazio afasta a clientela. A pastelaria, o café, o restaurante ou a taberna são espaços sociais, as pessoas sentem-se bem acompanhadas, além de que um estabelecimento cheio faz pressupor que o produto é bom ou que a relação qualidade preço é, no mínimo, aceitável.”
Fez questão de me oferecer um café e acabámos por nos sentar; a necessidade de falar, de extravasar as preocupações acumuladas. Era urgente a catarse, sentia-se.
Sem perda de tempo continuou: “Levamos uma vida de faz-de-conta; fazemos de conta que somos patrões, fazemos de conta que tudo vai bem. Denunciar as nossas dificuldades só nos dificulta a comunicação; na generalidade, as pessoas sentem-se melhor com os que têm uma vida desafogada, como se tivessem receio que as dificuldades e as preocupações sejam contagiosas; estar junto dos que vencem dá-lhes mais segurança.”
E num discurso magoado continuou:
“A exclusão social começa a fazer-se sentir não só sobre os que nada têm, mas também sobre os que vão deslizando para o nada ter. Por isso é necessário ludibriá-los, defendermo-nos dando-lhes a ilusão de que tudo vai bem. Esta sociedade cilindra todos os que não vencem, sem questionar que meios utilizam os pretensos vencedores.”
Levantei-me e agradeci-lhe a atenção. De olhos marejados e voz embargada pediu-me para voltar, gostava de conversar comigo. Disse. E com um sorriso triste concluiu: Sabe; tenho necessidade de falar.
3 comentários:
Excelente!
Um abraço.
Fernando Samuel; Obrigado pela visita!
Muito bem contado!... e vivido!
Um abraço
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