terça-feira, 3 de julho de 2018

O relato da bola


(Um divertido contributo para a história das telecomunicações)



O relato da bola

Ao contar esta estória por mim vivida, apercebi-me que não estava a ser convincente para os que me escutavam. Os meus interlocutores continuavam a ouvir com algum interesse mais pelo incomum do conteúdo do que pela credulidade que lhe atribuíam.

Quando afirmei que o relato de um jogo de futebol enviado de Lisboa via radiotelegráfica, era radiodifundido uma ou duas horas depois no “Rádio Clube de Cabo Verde” Cidade da Praia como se de um jogo em directo se tratasse, os que me ouviam esboçaram um sorriso de complacência.

Para quem não viveu no reino encantado das telecomunicações em que imperava o maravilhoso telégrafo morse, que tão bons serviços prestou e admirado foi, difícil é fazer-lhes crer como se veiculava o serviço informativo na década de quarenta do século passado, onde situamos esta quase aventura.

À velocidade ronceira de vinte palavras por minuto, média de cem caracteres, todos os domingos o prato forte do noticiário da “Presse Lusitânia” era preenchido com o relato de um desafio de futebol.

A primeira etapa desta saga tinha início na “Agência Lusitânia” junto ao Chiado, serviço mais de propaganda do que de informação, destinado a promover e glorificar o regime fascista.

O “jornalista” encarregue da árdua tarefa de passar ao papel um relato de futebol transmitido pela rádio, atendia o telefone, conversava com quem quer que aparecesse ou dava uma saltada à Brasileira quase em frente. Os boletineiros da Marconi iam colhendo as páginas dactilografadas que entregavam na central telegráfica na Rua de São Julião onde o texto depois de passado a morse em fita perfurada, era transmitido à velocidade não superior a cem caracteres por minuto para que mais facilmente pudesse ser recebido tendo em conta as interferências atmosféricas e outras ou à inaptidão de muitos radiotelegrafistas nas colónias e na navegação.

E neste exercício de paciência, as duas partes do desafio escorriam arrastadas ultrapassando os noventa minutos de jogo como se um longo prolongamento houvesse.

Em Cabo Verde, na Estação da Marconi situada na Achada de Santo António, distante do Rádio Clube localizado junto à Estação dos Correios na Cidade da Praia, os sinais de morse em pachorrenta cadência voltavam novamente ao papel dactilografado que o Antoninho, estafeta de lentidão reconhecida, num vai e vem, entregava ao locutor de serviço no Rádio Clube.

Acontece que relatar três ou quatro páginas de folhas A4 mesmo se lidas lentamente não corresponderia à distância de quinhentos metros percorridos pelo Antoninho mesmo que não encontrasse um amigo ou conhecido que à boa maneira de qualquer cabo-verdiano teria de se inteirar de como se encontrava toda a família, animais e culturas e só depois reiniciar a descida até ao Cais e a subida para a Achada de Santo António e, chegado à Marconi pegar nas páginas entretanto recebidas pelo radiotelegrafista e retornar ao Rádio Clube.

Como não era possível interromper a transmissão de Lisboa, a receção estava sujeita a interrupções de vária ordem tais como interferências, falta de energia eléctrica ou mesmo fading geral em ondas curtas. Nada disto impedia que o locutor enquanto aguardava o estafeta continuasse imperturbável e com crescente emoção a relatar o desafio, como se estivesse em direto criando avançadas de destreza, situações empolgantes, remates à trave, agressões e outras faltas que tanta celeuma provocava entre os ouvintes.

Ah!... Mas quando numa das páginas aparecia um golo, o tão ambicionado golo, o locutor ajeitava melhor o microfone, afinava a garganta, construía o ataque imparável e lançava o grito esperado: goooolo! E repetia gooolo, gooolo! Creio mesmo que o fazedor do espetáculo se deixava envolver pelo entusiasmo por si criado acabando por se emocionar.

O relato só terminava quando recebida a última página, para se certificarem do resultado final, não fosse ter escapado algum golo na travessia do Atlântico. Mas, mesmo se algum golo se tivesse extraviado nada estava perdido o locutor afinava mais uma jogada de perigo e no último minuto acertava o resultado.

Assim se confunde a ficção e o real. O espectador do jogo em Lisboa talvez vibrasse menos que o ouvinte que seguia com atenção o mesmo jogo fabricado pelo locutor, com a vantagem de os ouvintes do jogo de ficção usufruírem de mais tempo de entretenimento.

E porquê tanto espanto se nos lembrarmos das rádionovelas de então ou das telenovelas de hoje que magnetizam multidões?

Acompanhei todas as fases deste cândido embuste quer na “Lusitânia” e na Marconi na Rua de São Julião em Lisboa quer na Marconi na Achada de Santo António e, no próprio Rádio Clube da Praia em Cabo Verde.

A “Presse Lusitânia” fascista, com outros títulos e meios, continua a alienar ouvintes, leitores e espectadores diluindo-lhes a realidade numa aguadilha paradisíaca.
 

 (De pé a contar da esquerda o radiotelegrafista Ernesto Vitória, radiotécnico e gerente Manuel Tomaz Dias, o radiotelegrafista José Ferreira e o mecânico Avelino,
em baixo também a contar da esquerda o radiotelegrafista Vitor Carreiro, o praticante radiotelegrafista Cid Simões e o radiotelegrafista Tavares de Almeida.

(Manuel Tomaz Dias construiu o emissor do Rádio Clube, a locução estava a cargo de Vitor Carreiro, Ernesto Vitória e José Ferreira e eu, adolescente encantado com os mistérios da rádio, fazia de “assistente”).





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