(Um divertido
contributo para a história
das telecomunicações)
O relato da bola
Ao contar
esta estória por
mim vivida,
apercebi-me que não
estava a ser convincente
para os que me escutavam. Os meus
interlocutores continuavam a ouvir com algum interesse
mais pelo incomum do conteúdo
do que pela
credulidade que lhe
atribuíam.
Quando afirmei que o relato de um
jogo de futebol
enviado de Lisboa via
radiotelegráfica, era
radiodifundido uma ou duas horas depois no
“Rádio Clube
de Cabo Verde” Cidade da Praia como se
de um jogo
em directo se tratasse, os que me ouviam
esboçaram um sorriso
de complacência.
Para quem não viveu
no reino encantado das telecomunicações em
que imperava o maravilhoso
telégrafo morse, que
tão bons
serviços prestou e admirado foi, difícil é fazer-lhes crer como se veiculava o serviço
informativo na década de quarenta do século passado,
onde situamos esta quase
aventura.
À velocidade ronceira de vinte palavras
por minuto,
média de cem caracteres, todos
os domingos o prato
forte do noticiário
da “Presse Lusitânia” era preenchido com o relato de um
desafio de futebol.
A primeira
etapa desta saga
tinha início
na “Agência Lusitânia” junto ao Chiado,
serviço mais
de propaganda do que
de informação, destinado a promover e glorificar o regime fascista.
O “jornalista”
encarregue da árdua tarefa
de passar ao papel um relato de futebol
transmitido pela rádio,
atendia o telefone, conversava com
quem quer
que aparecesse ou
dava uma saltada à Brasileira quase em frente. Os boletineiros da Marconi iam colhendo as páginas dactilografadas que
entregavam na central telegráfica na Rua
de São Julião onde
o texto depois
de passado a morse em
fita perfurada, era
transmitido à velocidade
não superior
a cem caracteres
por minuto
para que mais facilmente pudesse ser
recebido tendo em conta
as interferências atmosféricas e outras ou à inaptidão de muitos
radiotelegrafistas nas colónias e na navegação.
E neste exercício
de paciência, as duas partes do desafio escorriam
arrastadas ultrapassando os noventa minutos
de jogo como
se um longo
prolongamento houvesse.
Em Cabo Verde, na Estação da Marconi situada na Achada
de Santo António, distante
do Rádio Clube
localizado junto à Estação
dos Correios na Cidade
da Praia, os sinais
de morse em pachorrenta
cadência voltavam novamente
ao papel dactilografado que
o Antoninho, estafeta de lentidão
reconhecida, num vai e vem, entregava ao locutor de serviço no Rádio
Clube.
Acontece que
relatar três ou quatro páginas de folhas
A4 mesmo se lidas
lentamente não
corresponderia à distância de quinhentos metros
percorridos pelo Antoninho mesmo
que não
encontrasse um amigo
ou conhecido
que à boa maneira
de qualquer cabo-verdiano
teria de se inteirar de como
se encontrava toda a família, animais
e culturas e só
depois reiniciar
a descida até
ao Cais e a subida
para a Achada de Santo
António e, chegado à Marconi pegar nas páginas entretanto recebidas pelo radiotelegrafista e retornar
ao Rádio Clube.
Como não era possível interromper a transmissão de Lisboa, a receção estava sujeita a interrupções
de vária ordem
tais como
interferências, falta
de energia eléctrica ou mesmo fading geral
em ondas
curtas. Nada disto impedia que o locutor enquanto aguardava o estafeta
continuasse imperturbável e com crescente emoção a relatar o desafio, como se
estivesse em direto criando avançadas de
destreza, situações
empolgantes, remates
à trave, agressões
e outras faltas que
tanta celeuma
provocava entre os ouvintes.
Ah!... Mas
quando numa das páginas
aparecia um golo, o tão
ambicionado golo, o locutor ajeitava melhor o microfone, afinava
a garganta, construía o ataque
imparável e lançava o grito esperado: goooolo! E
repetia gooolo, gooolo! Creio mesmo que o fazedor do espetáculo
se deixava envolver pelo entusiasmo por si criado
acabando por se emocionar.
O relato só
terminava quando recebida a última página, para se certificarem do resultado
final, não
fosse ter escapado algum
golo na travessia do Atlântico. Mas,
mesmo se algum
golo se tivesse extraviado nada estava
perdido o locutor afinava mais uma jogada de perigo
e no último minuto
acertava o resultado.
Assim se confunde
a ficção e o real.
O espectador do jogo
em Lisboa talvez
vibrasse menos que
o ouvinte que
seguia com atenção
o mesmo jogo
fabricado pelo locutor,
com a vantagem
de os ouvintes do jogo
de ficção usufruírem de mais tempo de entretenimento.
E porquê
tanto espanto
se nos lembrarmos das rádionovelas de então ou das telenovelas de hoje
que magnetizam multidões?
Acompanhei todas as fases deste cândido
embuste quer
na “Lusitânia” e na Marconi na Rua de São Julião em
Lisboa quer na Marconi na Achada de Santo
António e, no próprio
Rádio Clube
da Praia em
Cabo Verde.
A “Presse Lusitânia” fascista, com outros títulos
e meios, continua a alienar
ouvintes, leitores
e espectadores diluindo-lhes a realidade numa aguadilha paradisíaca.
(De pé a contar da esquerda o radiotelegrafista Ernesto Vitória, radiotécnico e gerente Manuel Tomaz Dias, o radiotelegrafista José Ferreira e o mecânico Avelino,
em baixo também
a contar da esquerda
o radiotelegrafista Vitor Carreiro, o
praticante radiotelegrafista Cid Simões e o radiotelegrafista Tavares de
Almeida.
(Manuel Tomaz Dias
construiu o emissor do Rádio Clube, a locução estava a cargo de Vitor Carreiro, Ernesto Vitória e
José Ferreira e eu,
adolescente encantado com os mistérios
da rádio, fazia de “assistente”).
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