A argumentação em jogo na
greve anunciada, onde a razão nem sempre é razoável, trouxe-me à memória esta
crónica de 2005 emitida na Rádio Nova do Porto.
A
RAZÃO DA NÃO
RAZÃO
Ver as cousas até ao fundo…
E se as cousas não tiverem fundo?
Álvaro
de Campos
Entrar
de carro em Lisboa quanto mais cedo melhor; verifico o nível de combustível e,
não vá o diabo tecê-las, o melhor seria abastecer-me na primeira bomba de
gasolina antes de entrar na autoestrada.
Se
bem o pensei assim o fiz. São sete horas menos cinco minutos, o funcionário lá
estava, sentado à entrada do seu cubículo, saudei-o com um sonoro “bons-dias”,
pedindo-lhe de seguida para ser atendido.
Resposta
seca: faltam cinco minutos para abrir!
Como
quem pede desculpa, ousei dizer-lhe que estava com alguma pressa.
Sem
perda de tempo, retorquiu incisivo: com
ou sem pressa na farmácia também teria que esperar!
-
Não ficava mal alguma amabilidade… Arrisquei.
- Para comigo, nem a
vida tem sido amável, murmurou.
Para
preencher o silêncio que se seguiu, permiti-me recordar que, ainda não havia
muito tempo, um dos seus colegas se enganara cobrando-me menos trinta euros e,
como disso me apercebera, apreçara-me em voltar e repor a quantia em falta.
O
homem olhou-me de frente e disparou: Não
fez mais que a sua obrigação! Mais uma vez tem razão, desculpei-me
humildemente.
Lembrei-lhe
que um cliente… Não me deixou acabar antevendo onde é que eu queria chegar.
- O patrão tanto me
agradece assim como de outra maneira. Sabe qual é o meu ordenado?
A
rádio emitiu o sinal das sete; o sujeito levanta-se e atende-me como se eu
tivesse acabado de chegar; entrego-lhe o cartão do Multibanco para pagamento, e
numa postura de menosprezo, disse-me:
- Não sabe que com este
cartão já se podia ter abastecido e estar a caminho?
Apreciei
a argumentação ágil e precisa a todas as minhas investidas, replicou sempre com
objetividade bem fundamentada e, no entanto, face à civilidade pela qual
reciprocamente nos devemos reger, as suas razões não eram razoáveis.
Somos
apanhados com alguma frequência nestas encruzilhadas onde a razão e a não razão
se confrontam deixando-nos vazios de argumentação.
O
próprio uso dos vocábulos não deverá ser deixado entregue aos impulsos do nosso
inconsciente; por exemplo: ainda há bem pouco tempo, também numa estação de
abastecimento de combustíveis, ao encher o depósito, o mecanismo de segurança
não funcionou derramando o “precioso líquido” com o prejuízo e os perigos daí
inerentes.
Reclamei
junto do funcionário, respondendo-me este, com a maior dos à-vontades, que não
tinha sido ele a encher o depósito e, como tal, nada tinha a ver com o que acontecera.
-
Mas o sistema está avariado e a bomba de gasolina não é minha; respondi.
-
Então se não é sua porque é que me está a chatear?!
Também
para casos destes não sou bom de assoar, mas recorri no entanto a uma réstia de
sangue-frio para raciocinar e concluir que não estava à altura de continuar uma
discussão a esse nível. Paguei, saí, tomei nota da anedota e sorri.
Cada
vez mais, devemos exercitar a nossa capacidade de, face ao absurdo, encontrar o
seu lado cómico, caso contrário colocamos em risco a nossa sanidade mental.
Os
motoristas exigem melhores salários, o país tem receio da greve, e…
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