domingo, 11 de agosto de 2019

MARCELO TEME

A argumentação em jogo na greve anunciada, onde a razão nem sempre é razoável, trouxe-me à memória esta crónica de 2005 emitida na Rádio Nova do Porto.

A RAZÃO DA NÃO RAZÃO

Ver as cousas até ao fundo…
E se as cousas não tiverem fundo?
Álvaro de Campos

Entrar de carro em Lisboa quanto mais cedo melhor; verifico o nível de combustível e, não vá o diabo tecê-las, o melhor seria abastecer-me na primeira bomba de gasolina antes de entrar na autoestrada.

Se bem o pensei assim o fiz. São sete horas menos cinco minutos, o funcionário lá estava, sentado à entrada do seu cubículo, saudei-o com um sonoro “bons-dias”, pedindo-lhe de seguida para ser atendido.

Resposta seca: faltam cinco minutos para abrir!

Como quem pede desculpa, ousei dizer-lhe que estava com alguma pressa.

Sem perda de tempo, retorquiu incisivo: com ou sem pressa na farmácia também teria que esperar!

- Não ficava mal alguma amabilidade… Arrisquei.

- Para comigo, nem a vida tem sido amável, murmurou.

Para preencher o silêncio que se seguiu, permiti-me recordar que, ainda não havia muito tempo, um dos seus colegas se enganara cobrando-me menos trinta euros e, como disso me apercebera, apreçara-me em voltar e repor a quantia em falta.

O homem olhou-me de frente e disparou: Não fez mais que a sua obrigação! Mais uma vez tem razão, desculpei-me humildemente.

Lembrei-lhe que um cliente… Não me deixou acabar antevendo onde é que eu queria chegar.

- O patrão tanto me agradece assim como de outra maneira. Sabe qual é o meu ordenado?

A rádio emitiu o sinal das sete; o sujeito levanta-se e atende-me como se eu tivesse acabado de chegar; entrego-lhe o cartão do Multibanco para pagamento, e numa postura de menosprezo, disse-me:

- Não sabe que com este cartão já se podia ter abastecido e estar a caminho?

Apreciei a argumentação ágil e precisa a todas as minhas investidas, replicou sempre com objetividade bem fundamentada e, no entanto, face à civilidade pela qual reciprocamente nos devemos reger, as suas razões não eram razoáveis.

Somos apanhados com alguma frequência nestas encruzilhadas onde a razão e a não razão se confrontam deixando-nos vazios de argumentação.

O próprio uso dos vocábulos não deverá ser deixado entregue aos impulsos do nosso inconsciente; por exemplo: ainda há bem pouco tempo, também numa estação de abastecimento de combustíveis, ao encher o depósito, o mecanismo de segurança não funcionou derramando o “precioso líquido” com o prejuízo e os perigos daí inerentes.

Reclamei junto do funcionário, respondendo-me este, com a maior dos à-vontades, que não tinha sido ele a encher o depósito e, como tal, nada tinha a ver com o que acontecera.

- Mas o sistema está avariado e a bomba de gasolina não é minha; respondi.

- Então se não é sua porque é que me está a chatear?!

Também para casos destes não sou bom de assoar, mas recorri no entanto a uma réstia de sangue-frio para raciocinar e concluir que não estava à altura de continuar uma discussão a esse nível. Paguei, saí, tomei nota da anedota e sorri.

Cada vez mais, devemos exercitar a nossa capacidade de, face ao absurdo, encontrar o seu lado cómico, caso contrário colocamos em risco a nossa sanidade mental.

Os motoristas exigem melhores salários, o país tem receio da greve, e…

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