segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Anorexia sintáctica - Fernando Buen Abad Domínguez




Anorexia sintáctica




Tudo o que não escreveste será usado contra ti.
Fernando Buen Abad Domínguez
Rebelión/Universidad de la Filosofía

Quando não escrevemos – nem documentamos – as nossas lutas, quando não escrever é um manifesto de indolência. Quando somos tomados pela preguiça ou pela abolia, quando chovem as desculpas e as evasivas... alguém encherá os vazios e fará com que se torne realidade um dos nossos piores pesadelos. O inimigo escrevendo a nossa história. Sem atenuantes.
Já há exemplos sem conta, com resultados humilhantes e dolorosos, saídos de certas “plumas eruditas” que se deleitam “tão caladinhos” por terem assestado o seu golpe de língua afiada nos occipitais da História. E xeque-mate, tudo o que dissermos será extemporâneo, secundarizado, tardio e defensivo. Pensas que o inimigo oferecerá o campo de batalha da memória para que levantemos livremente, quando queremos, os nossos monumentos da memória?
A oligarquia treina historiadores, críticos de arte, filósofos, sociólogos... para que propagandeiem, ao seu modo e segundo o seu capricho, as coisas que nunca ocorreram como eles dizem, que nunca foram enunciadas de acordo com a sua idiossincrasia e que nunca significaram tão pouco como dizem e lhes convém. Sempre. Centenas de revoluções artísticas, científicas, políticas e económicas... foram esmagadas pelo estilo do bem estar subvencionado com que é asfixiada a pouca imaginação e a sintaxe simplificada tributárias da ideologia da classe dominante. Sem sabor, sem alma, sem fogo.
Mesmo as maiores audácias da inteligência rebelde aparecem, em muitos relatos oligarcas, reduzidas a um anedotário infestado por grandiloquências de grande efeito ou por exageros de admiração truculenta que se diluem no individualismo, no solipsismo e no anedotário de épocas sempre já passadas. Com cores que variam consoante a pluma que se alugue. Pouco importa se se trata de uma biografia, de uma invenção tecnológica, de uma mobilização ou de um processo revolucionário... nas mãos dos nossos inimigos tudo isso é parte “natural”, embora disfuncional, de um sistema económico e político inamovível do qual se fala pouco e, sobretudo, sem incomodar os seus patrocinadores. Nunca se falará de uma revolução triunfante a partir do coração do sistema. Mas a verdade é que se trata de um artifício velho como a humanidade para lavar cérebros, num ápice, com sabões de resignação e impotência.
Quando outros relatam as nossas lutas apoderam-se primeiro das substâncias semiótias mais suculentas. Manipulam o espírito, prostituem-no e submetem-no a uma subversão de conveniências onde é irreconhecível o sentido da luta porque ela é reduzida a um catálogo de incidentes dissociados. Coisas de gente “idealista” ou “utópica” no melhor dos casos. O inimigo escreve de nós e sobre nós para nos destruir. Não esperemos misericórdia, tanto menos quanto mais se tratar de plumas que se esmeram em torturar a verdade com subtilezas sintácticas e muitos “dados” .
Eles andam em busca das nossas histórias para cometerem o seu crime de lesa realidade destruindo os nossos símbolos e a nossa semântica. Ficamos desfigurados e sem alma, encarcerados nalgum género literário da moda capaz de converter as nossas lutas em mercadoria para o entretenimento da oligarquia. Com “final feliz”. Eles vão diariamente à caça, soltam as suas lebres “intelectuais”, “artistas” ou “académicos” sedentos de fama e de uma gorda conta bancária, para que voltem com uma ou várias presas históricas e as convertam de imediato em iguarias ideológicas a la carte. Condimentadas de acordo com o seu paladar de classe e tendo em conta as suas urgências “educativas” para domesticar as massas: para que aprendam a não escrever a história.
Cada linha que não escrevamos, cada parágrafo e cada página que deixemos ao abandono... serão usados contra nós. A história do teatro popular, a história da ciência emancipadora, a história das lutas operárias, camponesas ou universitárias. A história das revoluções de género, a história dos avanços estéticos emancipadores, a história das histórias revolucionárias... tudo será pulverizado na liquidificadora mental hegemónica para que fiquemos sem história e sem referencias. É preciso ver o que dizem as enciclopédias sobre a história do mundo, o que se ensina nas escolas, como se escreve e se ensina a filosofia e a ciência... para entender a dimensão da caçada a que é submetida a inteligência nas mãos dos eruditos do engano e dos seus filtros ideológicos anestésicos.
Com mil esforços e remando sempre contra a corrente, as forças revolucionárias, em todos os âmbitos da luta, impuseram várias vitórias que, se nos descuidarmos, ficam emudecidas, submersas debaixo da retórica dos usurpadores sintácticos que, quando não as tornam invisíveis, banalizam as nossas batalhas. E nós, o que fazemos? Não poucas vezes berramos como crianças a quem tiraram os rebuçados e não poucas vezes disfarçamos com “lágrimas” a irresponsabilidade politica de não termos dado conta para a posteridade da obra realizada. Muito mal.
Entre os nossos, não são poucos os que aguardam o “financiamento espectacular” para a obra prima. Não são poucos os que lamentam a sua “má sorte” e a sua pouca “veia literária” para justificar não terem produzido o testemunho da luta individual ou colectiva que ocorreu, e que ocorre, nos muitos milhões de revoluções que existem no mundo e que se não vêem à “vista desarmada”. E tudo isso implica uma forma de derrota convertida em “culpa” pessoal com a qual muitos companheiros se lamentam diariamente enquanto dão por perdida a oportunidade de se ressarcirem perante os que iniciam ou continuam as batalhas que nos comprometem. E não é justo.
E, para que se não julgue que tudo o que aqui se disse é exagerado, passemos em revista, minuciosa e sinceramente, as tantas histórias que deveríamos ter contado sobre as lutas a que entregamos as nossas vidas. As verdadeiras lutas, as de corpo e alma, as da coerência e da permanência, as da unidade e as que não param nunca.  Comparemos essa lista com as páginas que escrevemos ou coleccionamos a seu respeito. Não é improvável que o balanço revele uma paisagem desigual e desafiante, na qual o tanto que foi vivido não tenha reflexo real nem completo no que foi publicado e difundido. Essa é uma das nossas maiores debilidades e erros. Uma dívida enorme para com aqueles por quem lutamos e que poderão nem sequer se ter apercebido disso. Tomaste nota?

Dr. Fernando Buen Abad Domínguez
Universidad de la Filosofía
(Tradução de Agostinho Santos Silva)
 

Sem comentários: