Um dia no Avante!:
"Talvez o meu pai tenha razão e eu tenha ido bebé de colo"
Catarina Pires
08 Setembro 2018
Ontem, Jerónimo de Sousa declarou
aberta a 42.ª edição da Festa do Avante!, depois de agradecer, como de costume,
aos construtores da festa, camaradas e amigos, que, com o seu trabalho
militante e voluntário, a ergueram, para desfrute de todos nós, os visitantes.
"Mais ninguém te faz festas com esta", lê-se numa t-shirt à venda no
stand do Porto. E é bem capaz de ser verdade.
Chegar à Quinta da Atalaia, Amora,
Seixal (temos sempre que acrescentar Amora, Seixal, porque há mais Amoras na
terra), na primeira sexta-feira de setembro, com o sol a descer, é como voltar
a casa. Não se explica muito bem. Entra-se ali e está-se em casa.
A caminho da festa, o meu pai
garantia-me que fui ao Jamor, pequenina, ainda de colo, e que era só calor e pó
e a minha mãe, pouco dada a festas e militâncias, não durou lá muito tempo
comigo e o meu irmão, quase da mesma idade.
O meu pai foi a todas. Eu não sei.
Talvez à Ajuda, também calor e pó, dessa tenho uma vaga lembrança. E depois só
já crescida (já a festa tinha conquistado a Quinta da Atalaia há uns tempos),
aos 24 anos, por causa de um livro que escrevi com o Álvaro Cunhal, aos 28, em
trabalho, como jornalista, e desde então, sempre.
Este ano, falhei o discurso de
abertura, ouvi-o ao longe, da porta da Quinta da Princesa, como ouvi ao longe o
Avante Camarada, sem poder juntar a minha voz à deles, abraçada, à moda
alentejana, a pessoas que não conheço, e a terra sem amos, a Internacional.
Quando não falho, as lágrimas também não e são outra coisa que me custa
explicar. Talvez seja da justeza dos ideais e da luta, da luta a sério, por
eles. Talvez seja disso, a emoção.
Anteontem, pediram-me um texto sobre
a festa e então eu, que ia só por voltar a casa, pela primeira vez, nos últimos
15 anos, percorri aqueles quilómetros todos, de uma ponta à outra, de olhos
diferentes, a ver o que nunca tinha visto. E foi um espanto.
Talvez o meu pai tenha razão e eu
tenha ido bebé de colo, porque há tanta gente com bebés de colo e em
cadeirinhas, há miudagem que farta, em magote ou com os pais, pré-adolescentes
e adolescentes, como os meus filhos, pós-adolescentes e malta da minha idade,
malta da idade do meu pai (a geração de Abril) e mais velhos, bengalas. E estão
todos em todo o lado. São muitos (quando levo amigos meus de direita à Festa do
Avante!, a piada é sempre a mesma: "são muitos, medo"). Ninguém com
pressa. Minto, quando começa a Carvalhesa a avisar que vai abrir o Palco 25 de
Abril, aparece gente a correr de todas as artérias da festa. Os comunistas (e
os outros todos, que não há só comunistas na festa) gostam de dançar. Sobretudo
a Carvalhesa. De resto, ninguém com pressa.
É bonito isso na festa. É um lugar
onde se está. E tanto se pode estar no palco 25 de Abril a ouvir um pedaço da
nona sinfonia de Beethoven [Sinfonia n.° 9 Coral op. 125 (4.° andamento:
Finale-Presto)], interpretado pela Orquestra Sinfonietta de Lisboa e o Coro
Sinfónico Lisboa Cantat, como no palco 1º de Maio a dançar com os
cabo-verdianos Tubarões. Tanto se pode estar a assistir a um combate de boxe
como a ver 1936, O Ano da Morte de Ricardo Reis, pel'A Barraca, no
Avanteatro. Tanto pode estar-se a jogar futebol como a ver a exposição do
Pavilhão Central "Capitalismo - Génese, natureza, contradições".
Tanto pode estar-se a ver o filme Luz Obscura, de Susana Sousa Dias, no
CineAvante, como a beber copos, comer e conversar numa qualquer esplanada do
mundo ou do país (da China a Leiria, da Madeira à Venezuela, de Beja ao Brasil,
de Lisboa a Cuba, é escolher - podia continuar, mas acho que já se percebeu a
ideia).
E ainda há os debates. Muito debatem
os comunistas. Há debates em todo o lado e a toda a hora. E há a feira do disco
e a do livro. Fui espreitar. Estive para comprar o Casei com um Comunista,
do Philip Roth, mas resisti.
Quando acabei a volta, sozinha (é
tão raro estar na festa sozinha) percebi finalmente porque volto lá sempre e me
sinto em casa. É um lugar onde toda a gente trata toda a gente toda por igual
(e por camarada), onde cantei com o Sérgio Godinho e o Jorge Palma, onde me
desiludi com o Fausto, onde fiz as pazes com o Paulo de Carvalho, onde chorei
com a Estrela da Tarde cantada pelo Carlos do Carmo e com a Desfolhada
na voz de Simone de Oliveira e onde perdi a vergonha de saltar com os Xutos
& Pontapés. É um lugar onde posso tudo o que quiser. É um lugar de
liberdade.
Sem comentários:
Enviar um comentário