me apertado. Quase esmagado. Aquela massa compacta de gente estava feliz.
Invadiam todos os lugares da antiga FIL. Eram milhões de conversas, milhares de
sorrisos, infinitos abraços. E no domingo à tarde o comício teve de vir para a
rua. A grande nave era pequena de mais.
Era a
primeira edição da Festa do Avante!. Estávamos em 1976. Nunca se tinha
visto nada igual. Foi a primeira vez que vi um palco gigante. Que vi músicos a
sério. Sentia-me bem. A palavra que mais se ouvia era “camarada”. A segunda,
“liberdade”. Tudo era novidade. Corredores de política. Corredores de comida.
Corredores de música. Corredores de arte. Mas o espaço que ficou gravado na
minha memória, porque passei lá imenso tempo, era o Espaço Internacional.
Milhares de pessoas queriam ver o pavilhão da União Soviética, da RDA ou da
Checoslováquia. Ali estavam os países socialistas e os partidos irmãos. Ali
estava o imaginário.
Os países
socialistas ofereciam livros, cartazes, harmónicas, chapéus, palas para o sol,
emblemas, balões, bandeiras e até relógios de bolso made in DDR. Algumas
coisas consegui no meio de tantos braços esticados. Não me lembro o quê.
Excepto o famoso relógio de bolso. Uma proeza. Uma prova de que a persistência
dá frutos. Durante anos, o relógio de horas certas embelezou a minha
mesa-de-cabeceira. Todos os dias lhe dava corda num ritual quase mecânico.
Tinha orgulho naquele pequeno relógio de algibeira conseguido a pulso. Com o
tempo o relógio perdeu importância. Parou um dia nas seis e seis. Foi
depositado numa gaveta.
Ao jantar,
ainda antes de o relógio ser guardado na gaveta, disse ao meu pai e à minha mãe
que queria ir trabalhar. Não sei que idade tinha. Ficaram espantados. Tinha
idade ainda para estudar. Era novo, muito novo. Disse-lhes que queria ajudar a
construir a Festa. Ir trabalhar para o Avante!. De mochila às costas, apanhei
o comboio e fui. Amigos iam para as vindimas ou para a paragem da Celulose.
Ganhavam dinheiro. Eu optei por ir para a Festa. Voluntário. Gastar dinheiro
aos meus pais. Foi um mês alucinante. Conheci tanta gente. Fiz tanta coisa. E
depois naquele fim de tarde da sexta-feira mágica, os portões abriram-se e a
maré humana invadiu tudo o que tínhamos construído. Ficou a sensação do dever
cumprido. A sensação de que a persistência dá frutos. Antes de sair de casa,
pedi ao meu pai para todos os dias dar corda ao relógio!
Foram anos
seguidos a cumprir o meu voluntariado. A Festa ficou-me no sangue. Cresci a ver
a Festa crescer. Preguei milhares de pregos. Coloquei tubos. Pintei murais.
Reguei a relva. Recolhi o lixo. Desenhei letras. Serrei madeira. Dancei. Abracei.
Beijei. Ali, naqueles metros quadrados a perder de vista, sentíamo-nos bem.
Sentíamos paz. Dávamos sentido à vida. Éramos solidários. Éramos amigos. Ali,
era outro mundo. Um mundo sonhado e desejado. Um mundo difícil de conseguir. Um
mundo possível. Humanista. Era o electricista, o canalizador, o arquitecto, a
costureira, o cozinheiro, o pintor, o artista, o técnico de som, o jardineiro,
o médico, a enfermeira, o bombeiro, o reformado, o estudante... eram tantos e
sempre tão poucos. Era tão gigante aquela tarefa colectiva. Ambiciosa.
Construir uma cidade em três meses para durar três dias. A Festa começava com
um esqueleto de tubos ao alto. Ia sendo construída, levantada do chão. Gostava
de adivinhar as formas. Crescia todos os dias. E depois das paredes ao alto,
artistas plásticos davam vida ao contraplacado castanho-claro. A Festa ganhava
cor e mensagem. E quando as centenas de mastros se engalanavam com bandeiras de
várias cores, a sexta-feira mágica aproximava-se. Eram três dias de sã loucura.
Uma maravilha.
Deixei de
ajudar a construir a Festa no ano em que coloquei o relógio na gaveta. O rumo
da vida assim o quis. Continuo a admirar o empenho e a dedicação que homens e
mulheres entregam naquela quinta ajoelhada perante o Tejo. Lugar de liberdade.
Lugar de cultura e saber. Lugar fraterno. O mundo necessita de muitos lugares
assim. Nunca faltei à chamada. Nunca faltei a uma Festa. São já 42 edições.
Existem amigos que só se abraçam uma vez no ano. É na Festa. Outros já partiram
e ficaram no coração. A Festa do Avante! é um caldo de emoções. Ao fim
do dia, a brisa combate o calor. Gosto de me sentar na relva e olhar para
aquela cidade que cada vez está maior. Penso como é possível. De onde continua
a vir tanta força para planear, organizar e dar vida a um dos maiores acontecimentos
políticos da Europa. Não encontro uma resposta mas muitas respostas.
A propósito
desta crónica tirei o relógio da gaveta. Continuava nas seis horas e seis
minutos. Dei corda e os ponteiros começaram no seu ritual como se o tempo não
tivesse andado. Talvez o relógio made in DDR ainda não saiba que o Muro
de Berlim caiu. Que perdeu a nacionalidade. Que agora é alemão unificado. Mas
os ponteiros teimam em trabalhar. Numa luta por um tempo novo. O velho relógio
alemão ainda não morreu.
Jornal o Público 9-9-2018
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