sábado, 12 de janeiro de 2019

O 31º



 (Banksy)
O 31º

Não. Não é mais uma das minhas estórias. Segui-lhe de perto a trajetória, acompanhei o percurso, passo a passo, e assisti ao colapso da personagem que hoje vos apresento.

Uma boa manhã – normalmente as estórias começam assim – o diretor-geral chamou-o ao gabinete onde lhes foi servido um café, café que sela intimidades e estrutura conivências; após lhe enumerar e enaltecer qualidades de que nem sequer ele se havia apercebido, esboçou o quadro económico da empresa, fazendo saber que era imperioso o emagrecimento da mesma para que os objetivos, traçados pela administração central, fossem levados a bom termo.

Para os tecnocratas, a adiposidade de uma sociedade tem um significado preciso: excesso de pessoal. Logo, quando pensam em emagrecer a empresa não querem dizer mais do que despedir trabalhadores, por vários e sinuosos meios.

É uma tarefa difícil, começou por dizer, encenando uma expressão pesarosa, mas como deve saber, apressou-se a continuar, esta empresa não é a misericórdia e a competitividade… a competitividade tem compromissos bem definidos que rejeitam o sentimentalismo ou, como se diz mais comummente, temos que pôr o coração para atrás das costas, razão pela qual, dadas as qualidades que referi, o convido para me ajudar a concretizar a tarefa que lhe passo a expor: temos que suprimir trinta postos de trabalho; ser-lhe-ão fornecidos os critérios a ter em conta, tais como os melhores salários, idade, tempo de casa, actividade sindical, etc. etc. …

Inicialmente, deve utilizar todos os meios legais que a nova legislação laboral nos proporciona; usar com precaução, digamos, de forma velada e, em última instância, os clássicos meios de coacção; claro que, há mecanismos que conhece, e que me escuso de referir, mas que deixo implícitos.

Mais um café; falaram ainda da chuva e do bom tempo; e o nosso herói arrancou para a batalha, confiante nos seus méritos e seguro de beneficiar dos despojos. Talvez um lugar de chefia, uma qualquer promoção, um envelope recheado, férias, carro… Há dias de sorte, pensou.

Começou por espalhar o pânico; usou todas as manhas que pensar se possa; tornou-se odiado, mas também temido. Era o rosto do desespero que se abatia sobre não se sabia quem.

Antes da data aprazada, ufano pelo dever cumprido, apresentou o relatório ao mesmo diretor-geral. Não lhe foi servido café. O director leu, displicente, as conclusões, recostou-se na ampla cadeira de executivo, olhou-o de frente e, numa expressão fria e incisiva, disse-lhe que finalmente haviam decidido que não seriam trinta, mas trinta e um os despedidos e que o 31º seria ele.

Encontrei-o, não há muito tempo, à saída do consultório médico, guiado pela mão da mulher, inexpressivo, discurso fragmentado, remoendo sempre a mesma ladainha:

Que tinha sido uma grande injustiça; que fora sempre cumpridor e eficaz; que não compreendia o que se tinha passado... a mulher tentava levá-lo, sem resultado, mas aos poucos lá o foi arrastando a remoer a estafada lengalenga: grande injustiça; não compreendia; sempre cumpridor...

Naquele momento tive pena do pobre diabo, quase esquecendo todos os que haviam sido despedidos. Olvida-se, com frequência, que não devemos fazer aos outros aquilo que não desejamos que nos façam, ou ainda, que tudo o que fazemos de bem ou de mal funciona como o boomerang que nos destrói ou nos eleva.


Cid Simões
 (crónica lida na Rádio Baía)

2 comentários:

Olinda disse...

...ou quem com ferro mata,com ferro morre!!!Abraço

António José Rodrigues disse...

Muito Bom camarada Cid.
Abraço
AJR