(Banksy)
O 31º
Não. Não é mais uma das minhas estórias.
Segui-lhe de perto a trajetória, acompanhei o percurso, passo a passo, e
assisti ao colapso da personagem que hoje vos apresento.
Uma boa manhã – normalmente as estórias
começam assim – o diretor-geral chamou-o ao gabinete onde lhes foi servido um
café, café que sela intimidades e estrutura conivências; após lhe enumerar e
enaltecer qualidades de que nem sequer ele se havia apercebido, esboçou o
quadro económico da empresa, fazendo saber que era imperioso o emagrecimento da
mesma para que os objetivos, traçados pela administração central, fossem
levados a bom termo.
Para os tecnocratas, a adiposidade de
uma sociedade tem um significado preciso: excesso de pessoal. Logo, quando
pensam em emagrecer a empresa não querem dizer mais do que despedir
trabalhadores, por vários e sinuosos meios.
É uma tarefa difícil, começou por dizer,
encenando uma expressão pesarosa, mas como deve saber, apressou-se a continuar,
esta empresa não é a misericórdia e a competitividade… a competitividade tem
compromissos bem definidos que rejeitam o sentimentalismo ou, como se diz mais
comummente, temos que pôr o coração para atrás das costas, razão pela qual,
dadas as qualidades que referi, o convido para me ajudar a concretizar a tarefa
que lhe passo a expor: temos que suprimir trinta postos de trabalho; ser-lhe-ão
fornecidos os critérios a ter em conta, tais como os melhores salários, idade,
tempo de casa, actividade sindical, etc. etc. …
Inicialmente, deve utilizar todos os
meios legais que a nova legislação laboral nos proporciona; usar com precaução,
digamos, de forma velada e, em última instância, os clássicos meios de coacção;
claro que, há mecanismos que conhece, e que me escuso de referir, mas que deixo
implícitos.
Mais um café; falaram ainda da chuva e
do bom tempo; e o nosso herói arrancou para a batalha, confiante nos seus
méritos e seguro de beneficiar dos despojos. Talvez um lugar de chefia, uma
qualquer promoção, um envelope recheado, férias, carro… Há dias de sorte,
pensou.
Começou por espalhar o pânico; usou
todas as manhas que pensar se possa; tornou-se odiado, mas também temido. Era o
rosto do desespero que se abatia sobre não se sabia quem.
Antes da data aprazada, ufano pelo dever
cumprido, apresentou o relatório ao mesmo diretor-geral. Não lhe foi servido
café. O director leu, displicente, as conclusões, recostou-se na ampla cadeira
de executivo, olhou-o de frente e, numa expressão fria e incisiva, disse-lhe
que finalmente haviam decidido que não seriam trinta, mas trinta e um os
despedidos e que o 31º seria ele.
Encontrei-o, não há muito tempo, à saída
do consultório médico, guiado pela mão da mulher, inexpressivo, discurso
fragmentado, remoendo sempre a mesma ladainha:
Que tinha sido uma grande injustiça; que
fora sempre cumpridor e eficaz; que não compreendia o que se tinha passado... a
mulher tentava levá-lo, sem resultado, mas aos poucos lá o foi arrastando a
remoer a estafada lengalenga: grande injustiça; não compreendia; sempre
cumpridor...
Naquele momento tive pena do pobre
diabo, quase esquecendo todos os que haviam sido despedidos. Olvida-se, com
frequência, que não devemos fazer aos outros aquilo que não desejamos que nos
façam, ou ainda, que tudo o que fazemos de bem ou de mal funciona como o
boomerang que nos destrói ou nos eleva.
Cid Simões
(crónica
lida na Rádio
Baía)
2 comentários:
...ou quem com ferro mata,com ferro morre!!!Abraço
Muito Bom camarada Cid.
Abraço
AJR
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