quinta-feira, 7 de março de 2019

O presidente e os pirómanos - Monde diplomatique

O presidente e os pirómanos

«O pior ainda não aconteceu enquanto pudermos dizer: “Isto é o pior”.» Por estes dias, a diplomacia francesa faz pensar nestes versos do Rei Lear. Quando os cinco anos do mandato de François Hollande terminaram, pensámos ter batido no fundo [1]; alguns previam mesmo um sobressalto de orgulho. Afinal, agora que os Estados Unidos exibiam o seu soberano desprezo pelas capitais europeias e o desejo de se desembaraçarem das obrigações do Tratado da Aliança Atlântica, por que não aproveitar para abandonar a OTAN, renunciar à política de sanções contra Moscovo e conceber a cooperação europeia «do Atlântico aos Urais» com que sonhava o general Charles de Gaulle há sessenta anos? Uma França finalmente livre da tutela americana – e adulta!

Mas aconteceu o contrário. Paris, homologando a autoproclamação de Juan Guaidó como chefe do Estado venezuelano interino, com o pretexto de uma vagatura da presidência que só existe na sua imaginação, colocou-se mais uma vez a reboque da Casa Branca e deu o seu aval a uma tentativa de golpe de Estado. A situação na Venezuela é dramática: inflação galopante, subnutrição, prevaricação, sanções, violência [2]. É-o também porque uma solução política esbarra doravante na sensação de que seja quem for que se manifeste contra o poder, ou que perca o poder, corre o risco de ir parar atrás das grades. Como haveriam os dirigentes venezuelanos de não pensar no caso do antigo presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, proibido de se candidatar a uma eleição presidencial que provavelmente teria vencido e condenado a vinte e cinco anos de prisão?
A decisão de França infringe a regra segundo a qual Paris reconhece Estados, não regimes. Leva também Emmanuel Macron a encorajar a política incendiária dos Estados Unidos que, depois da Venezuela, visa igualmente Cuba e a Nicarágua. É que a proclamação de Guaidó foi inspirada pelos pirómanos mais perigosos da administração de Trump, como John Bolton e Elliott Abrams (ler nesta edição o artigo de Eric Alterman). De resto, ninguém ignora que o vice-presidente norte-americano Michael Pence informou Juan Guaidó de que os Estados Unidos iriam reconhecê-lo… na véspera do dia em que este se proclamou chefe de Estado [3].

A 24 de Janeiro último, Macron exigiu «a restauração da democracia na Venezuela». Passados quatro dias, chegou de alma leve ao Cairo, muito decidido a vender mais algumas armas ao presidente egípcio Abel Fattah Al-Sissi, autor de um golpe de Estado que foi rapidamente seguido do encarceramento de sessenta mil opositores políticos e da condenação à morte do seu antecessor livremente eleito. Em matéria de política externa que se pretende virtuosa, será que o pior ainda está para vir?

quarta-feira 6 de Março de 2019

1 comentário:

Olinda disse...

Uma boa crítica a Macron e uma pergunta de grande reflexão!Abraço