A TASCA DO CHICO FITAS
«Um hino à irracionalidade de um sistema que permitiu, na área do comércio e da hotelaria e restauração, a existência de um estabelecimento por 30 habitantes!»
Anselmo Dias – Avante!
Num beco estreito de um minúsculo lugarejo, duas tascas frente a frente entreolhavam-se de braços caídos: a tasca do Ti Manel e a tasca do Chico Fitas.
Como sobreviviam é mistério; a concorrência era grande – dois num beco – a clientela rara e o negócio magro, o que não impedia o Manel e o Chico, que com apenas cinquenta cêntimos, levassem o dia a bebericar: Pela manhã o Manel deslocava-se à tasca do compadre Fitas para tomar o mata-bicho e, com a mesma moeda, este último procedia de igual modo na tasquinha do Ti Manel.
Durante o dia, alternadamente, e sempre com a mesma moeda, bebiam um branquinho a meio da manhã, o bagacinho depois do almoço e o tintol durante a tarde, quantas vezes lhes apetecesse. Ao fim do dia os cinquenta cêntimos voltavam à caixa de origem e os dois taberneiros encerravam o estabelecimento, já de grãozinho na asa.
Sem esforço, porque ilustrado de modo tão evidente, é possível compreender os mecanismos da nossa economia, deixando-nos tranquilos quanto ao futuro que, deste modo, se nos apresenta promissor.
Assim, e com exemplo tão incisivamente elucidativo e inteligente – o que obviamente não vos deve surpreender – ficou provado, e não creio que haja algum cretino que o conteste, que podem continuar a encerrar fábricas, deixar os campos em pousio, abater barcos ou fechar as minas, que a venda de carros de luxo continua a aumentar, logo o bem-estar está a expandir-se em alta cilindrada e a grande velocidade.
Indústria de gatas, agricultura de muletas, pesca à deriva são questões de somenos importância, desde que continuem a surgir lanchonetes com cheirinho a telenovela, os snacks, o fast-food e os Shopping Center que, de mãos postas também se designam por “Catedrais de Consumo”.
Em quaisquer destes shoppings podemos comprar de tudo, construído, cultivado ou pescado no mais recôndito dos países desta “Aldeia Global”. Casualmente, encontramos umas coisitas nacionais, rendas de bilros Made in China”, por exemplo.
Diga-se em abono da verdade e dos nossos doutos governantes que cultivar os campos, trabalhar nas fábricas ou ir à pesca, com riscos de cair à água, não é nada agradável, sobretudo se os nuestros hermanos vão trabalhando por nós, isto porque nos foi concedida a graça de sermos unicamente consumidores, o que, repito, diga-se em abono da verdade e dos nossos amados governantes, é uma bênção a que nem os deuses têm acesso. Pelo menos aqueles deuses com quem contacto mais amiúde.
Onde é que vamos buscar o dinheiro para termos acesso a tantos bens? Que pergunta mais idiota!
Então para que nos serve o totoloto, o totobola, os casinos , a raspadinha, a lotaria, o jackpot, brevemente as corridas de cavalos, de lesmas e caracóis, os prémios nas embalagens – pague um e leve dois – os telefonemas diários, anunciando-nos que ganhamos, é só ir buscar; os concursos televisivos que dão sacadas de notas; e, claro, não podíamos esquecer os bancos sempre dispostos a dar mais um empurrãozinho para o abismo: “antecipe o seu ordenado e ganhe um super carro!” Não é emocionante?
Ah! Ia-me esquecendo de mais uma ajudinha que vem mesmo a calhar. Os nossos caros governantes (bem caros nos ficam) vão leiloar tudo: palácios, quintas, quintais, passeios, esgotos, tudo! E nós, obviamente, seremos os primeiros a receber um caldeirão de massa com a qual nos vamos divertir à brava nos shoppings… e rir muito… e sermos bué de felizes.
Por tudo isto, e o mais que seria cansativo enunciar, acho que as novas leis laborais vêm mesmo a calhar: despedir por dá cá aquela palha entregando-nos à nossa sorte, sujeitos à roleta e à batota dos poderosos.
E depois? Mas… e depois o quê!?
Vamos vivendo como o Ti Manel e o Chico Fitas: cinquenta cêntimos vão-nos chegar até ao final da nossa vida e, se formos poupados, mesmo para além dela.