“Se as
fábricas fecham deixando os trabalhadores na rua é natural que na rua se
manifestem”.
Já sabemos! Vota-se e se a miséria nos entra portas a dentro devemos
manifestar-nos em casa frente à televisão, dar um tabefe no filho, chatear a
mulher ou vice-versa. Na rua é que não!
Todas as medidas tomadas pelos governantes, mesmo se contrárias aos nossos interesses, estão
de acordo com as leis vigentes, e porque promulgadas pelos nossos
representantes, eleitos por sufrágio universal, devem
também ser aceites democraticamente. Contestá-las na rua é que não! Ainda não
chegámos ao Egipto.
Ora chiça! Exclamou a minha vizinha Carriça; qual
a razão por que não posso
dizer na rua o que desabafo frente à televisão e revoltar-me quando me tiram o pão?! Não; na rua é que não!
As marchas dos santos populares com
arquinhos e muitos balões, folclore para turista ver, cantiguinhas que a populaça acompanha até é lindo. Bandeiras negras
e vermelhas de contestação... na rua é que não!
Paradas militares com tambores e gaitinhas, canhões, tanques e o povo a bater palminhas e os senhores oficiais com fardas
muito limpinhas, que no final arengam
ladainhas, não esquecendo o senhor presidente circunspecto de postura imponente!
Reclamar emprego na rua não é decente, dá dores de cabeça a muita gente. Que fique
assente: na rua não!
“Não são permitidos ajuntamentos de mais de uma pessoa”; já ouvi
isto em Lisboa. Na rua não se exige, pede-se, mendiga-se o que permite a muitas boas almas
aliviar as pesadas consciências. A mão estendida enternece, o punho erguido é
ameaçador, amedronta. Na rua não!
Se se querem manifestar, manifestem-se na Travessa do Fala Só, só; tem
espaço limitado, cada qual pode falar com os seus botões, remorder
os seus problemas sem alterar a ordem pública nem preocupar ninguém; têm
como alternativa a Rua da Betesga. Outra rua é que não!
Mas chega o 1º de Maio que não cabe nas ruas; só na Liberdade, avenida de multidões, torrente de cravos, abraços solidários, hinos à conquista de um futuro de bem-estar, esperança que não desvanece; só em liberdade o primeiro de Maio acontece.
1º de Maio, avenida onde transbordam os sonhos que uma só rua não comporta; húmus
onde os manifestantes retemperam as forças ou
entusiasmos combalidos. O caminho tem sido íngreme e pedregoso, natural é
o cansaço.
Não, rua não!
Amplas avenidas a fervilharem de entusiasmo, de força, de amizade e confiança que nada nem ninguém derrubará; Alamedas, grandes espaços onde se respira a vontade
colectiva de ser gente, sóbria, feliz,
consequente.
Mais um primeiro de Maio em liberdade... robusto pilar da democracia.