O GARRAFÃO
“A ninguém se obriga a
que prometa, a que cumpra sim.”
M. Aires
Fiquei
emocionado. Um garrafão mensageiro!... Só podia ser nosso. Símbolo nacional, mais popular que as patrióticas quinas, balançando-se nas vagas... Lancei-me à água, cortei ondas de estarrecer (isto só para dar mais emoção...), e já na praia, com lágrimas farejando a boa nova, descolei o lacre que abraçava o gargalo, empurrei a rolha, nervoso que estava, e trémulo libertei a mensagem adivinhada, escrita com sangue, como nos romances de aventuras.
Mais tranquilo, li o lancinante apelo:
SOCORRO!
Estamos cercados
Portugal/Setembro/2012
O apelo de socorro repetia-se em
todas os idiomas latinos, anglo-saxónicos, asiáticos, árabes e outras bárbaras línguas, tal como nos catálogos de instruções dos electrodomésticos.
Orgulhoso da descoberta, fui abrigar-me no toldo alugado, dando conta do achado ao meu vizinho de sombra.
O homem olhou-me furibundo e vociferou: “Traidor!” E continuou colérico: “Era a derradeira oportunidade! A fuga pelo mar ao cerco que nos soterra. Traidor!”, Repetiu num soluço.
Mais calmo, o meu vizinho banhista pediu-me o garrafão, e abraçando-o carinhosamente, continuou: “O senhor aguenta o cerco que nos está a ser feito de verborrentas promessas, de sabichonice virosa, de comentadores que
tudo dizem saber e cada vez mais nos baralham?”
“Não
o aflige o cerco-atentado à inteligência, tirando-nos o pão com
a promessa de para as calendas gregas nos darem caviar, promovem
os despedimentos para baixar o desemprego e, eufóricos, anunciam-nos crescimentos negativos e uma vida melhor com tudo o que socialmente há de mais perverso?”
“Já
reparou que somos diariamente agredidos por
fácies empasteladas de superdotados de aviário, que enchem as páginas dos jornais, ditos de referência, e nos entram em casa pela TV, num autêntico atentado contra o ambiente?”
Síndroma
do cerco, pensei. E para interromper o discurso demolidor, tranquilizei-o dizendo-lhe que
a evasão é sempre possível. E quanto à verborreia já
todos conhecem a sua
vacuidade.
O homem das farturas entretanto aproximou-se de nós
lançando o seu honesto pregão: farturas, quem quer farturas!
“Tal
e qual o discurso do pica-pau-fura-laranja cá
do sítio, que nos prometeu fartura antes de cá chegar”, comentou. Não
pude reter uma gargalhada. Cucos e outros passarões nidificam a cada esquina, mas pica-pau-fura-laranja!?... É pássaro que nem nos meus sonhos voou.
Encomendámos
duas farturas; o homem abriu a cesta e só
tinha linguas-da-sogra. E o meu
vizinho, ainda abraçado ao garrafão, desabafou: “veja se não tenho razão!
Prometeram-nos farturas e assim que lhas pedimos deitam-nos a língua de fora.” E porque continuava excitado, procurei acalmá-lo sugerindo que
no sábado fosse à concentração da
CGTP na Praça do Comércio.
É NA RUA QUE SE ROMPE O CERCO!
Vou ver se
o encontro.