“A desconfiança a todos os níveis e as dívidas que atingem limites assustadores fazem com que as pessoas cortem na alimentação e outros bens”.
Miguel Goulão
Um pedacito de lápis que os miúdos deixaram sobre a mesa, o espaço da página não impressa de um anúncio de luxo num jornal e o sobrolho carregado que não serviria para publicitar o prazer de estar em férias.
Contabilizar os compromissos a satisfazer ao regressar a casa é um exercício penoso mas necessário.
O jornal, o lápis, o homem e os números, números que, gemendo apreensões, vão escorrendo pelo papel.
Um gole de café requentado, um cigarro e mais cifrões (ou eurões?)/ que adicionava, lenta e penosamente, a outras parcelas, e outras e outras ainda, à pilha de algarismos que não parava de crescer.
Para descontrair, o “homem em férias”, displicente, folheou o jornal detendo-se, sem interesse, num ou noutro título: portagens, liberalização dos preços da electricidade e do gás, aumentos dos transportes colectivos e outras bagatelas que não cabiam no cesto do seu desinteresse; voava, ou pretendia planar, acima de preocupações tão comezinhas.
Vagueou o olhar pelo que o circundava, retendo-se numa garrafa de whisky, vazia há já dois ou três dias; empresta um certo estatuto ter um bom whisky em casa, de preferência bastante velho; é chique!
Mas… os números, sempre os números a fustigá-lo. O empréstimo feito ao banco, os juros dai decorrentes, contas que ficaram por saldar!
E a maldita crise!... A troika, os tratamentos de choque e o desnorteio que se instala.
Quase a medo abre o jornal na página fatal: “movimento bolsista”. Os malditos papéis valem cada vez menos, melhor será despachá-los.
A euforia dos primeiros dias de pretenso repouso esfumou-se e, se o sol continuava, o relativo bem-estar fora de pouca dura, a realidade, aos poucos, impôs-se.
Férias, não são só tempo livre; pressupõem disponibilidade de espírito, tranquilidade que, partindo do presente, não pode deixar de ter em conta o futuro, e o futuro era já a garrafa vazia e, os meses de Setembro e Outubro, cheios de problemas, que alguns dias de desejado descanso vieram agravar.
Não havia tido em conta os imprevistos: amigos e conhecidos que se encontram, e não se pode deixar de acompanhar a bons restaurantes, contactos que se não devem perder porque ninguém sabe o dia de amanhã. E de compromisso em compromisso, esparrela em esparrela a carteira foi minguando.
Não se fazer encontrado em locais de referência, onde políticos mediáticos e seus cortesãos aquecem as suas influências, teria custos elevados.
A engrenagem dos favores é complexa e implacável. A troca de um sorriso, o esboço de um cumprimento, são mais-valias a não menosprezar, podem mais tarde servir de pretexto para “trocar impressões”, insinuar-se, mostrar-se disponível, em suma, tirar daí proveito: negociar favores! Os protagonistas são outros os favores mudaram de origem.
Colocar os filhos no ensino público, frequentar restaurantes modestos, levar a vida pacata do comum dos mortais são golpes rudes de suportar, geradores de incompreensões que se traduzem em desaguisados familiares e distúrbios psíquicos, dos quais, dificilmente, se libertam os que enveredam por caminhos escorregadios.
A pequena e média burguesia têm pés de barro e tenta, usando cordas sebosas, guindar-se ou confundir-se com os poderosos; exercício que os leva a cair, com frequência, na classe que sempre menosprezaram.
Insurgem-se contra os senhores que lhes alimentaram ilusões, culpabilizando, no entanto, os que no sopé da pirâmide lutam pelo pão de cada dia.
Nunca se olham ao espelho, o mal vem sempre dos outros. Desconhecem, no fulgor do efémero sucesso, que a instabilidade a que todos, absolutamente todos, estão sujeitos é uma constante, tão mais traumática, quanto mais alto se sonha subir. Para estes “analfabetos políticos” o capitalismo é alheio a tudo isto.
Classezinha de frustrados, híbrida, fragmentada e presunçosa. Coitada!
Fernando Campos (o sítio dos desenhos)