Sindicalista
revolucionário e poeta (1864-1914)
I
-- De rojo, colando o
ouvido ao solo arenoso, o selvagem escuta os passos perseguidores que ainda vêm
longe…
-- Quem, mais prevenido, pusesse
a concha da orelha em contacto com o fremir do subsolo, --- que é como quem
dissesse: a vida subterrânea das ideias que se iniciam --- havia de sentir, há
bons anos já, que alguma cousa, fenomenalmente extraordinária, estava a crescer
e a engrossar no misterioso útero em que se germinam todas as grandes causas e
todas as grandes transformações…
-- O homem civilizado, no
meio da complexidade e atordoamento da sua existência, distraído e confundido
com o Ruido com que ele próprio fez a vida, tal qual está, cheia de violência e
de exigências infinitas; que é obra sua, e com que orgulhosamente se envaidece
e ao mesmo tempo tiranicamente se martiriza a si mesmo; o homem culto parece
estar inferior ao selvagem quanto a aperceber o que se encontra a mais de um
palmo adiante… do seu nariz investigador.
Com uma instrução
cultural que lhe forneceu lentes de poderosíssimo alcance e conhecimentos
profundos e transcendentes; sabedor da História e de histórias, que são
rosários de exemplos e de escarmentadoras lições; munido de estatísticas, economias-políticas,
e de tantas outras ciências e filosofias de cifras e orçamentos; ao homem culto
de hoje parece ainda surpreende-lo uma crise séria, seja de carestia seja de
abundância, uma greve geral, um movimento insurrecional qualquer – simples
mexer de ombros do colosso… -- como poderia surpreender-nos uma navalha
subitamente jogada de uma esquina sem luz…
Porque, no fim de contas, a atitude ainda em
geral subsistente, nos indivíduos como nos estados, essa atitude de quase total
alheamento e indiferença das classes que estão bem perante o mal-estar
das restantes, cada vez mais cavado e mais fundamente torvo e iniquo, não obedece
a um qualquer sistema ou processo de combatividade; não significa estritamente
um fechar de olhos consciente de quem não quer ver desgraças, ou de quem não
está para se ralar, num lazaronismo de barriga cheia…
Nesta atitude há também certamente muito de imbecilidade
e de vista curta – de quem não sabe aperceber a tormenta, de quem não calcula a
força fermentadora que existe nos preparos, nos elementos, que já há muito se
vêm acumulando, coerentemente, logicamente, mais principalmente por vezes pela
velocidade adquirida, mas sempre com a lógica fatal de todos os grandes factos
históricos. Movimento que escolas e partidos e publicismos não engendram e
combinam – o movimento explicado, natural, de todas as revoluções e
transformações geológicas como políticas e sociais.
Ao que parece, a Sociedade constituída mal
chegou a colar o ouvido ao solo em fermentação, ou, se o colou, não pôde ou não
soube medir-lhe a colossal grandeza…
Não
se explica de outra forma, como não se explicaria a passividade de um inquilino
dormindo docemente sobre uma abóboda, sob a qual todo um depósito de materiais
explosivos começasse a estourar em pirotecnias trágicas…
-- Porque já não é precisamente
um simples fermento de rebelião, facilmente apagável à primeira investida; não
é uma singela marcha de um exército, embora formidável, meio em arroubos
ingénuos de festa, meio em pé de guerra brava, que avança e faz tremer o solo.
É Vesúvio que começou já a sua erupção, de goelas escancaradas vomitando fogo e
entoando um sabbat de extermínio.
Retratado por Tomás Leal da Câmara
Paulino de Oliveira