Cu-cu!! tô
O
Uf!...
Cu-cu!! tô
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Uf!...
«Donde colho que naõ he bom o dinheiro para paõ; que se fora paõ, nunca houvera de matar a fome.»
Todos os dias, são despejadas na minha caixa do correio electrónico prendas como esta:
«Excelentíssimo Senhor,
Pretende V. Ex.ª ressuscitar termos obsoletos que nada têm a ver com o país real. V. Ex.ª ignora a realidade, é um ultrapassado que não assimila o progresso, os avanços tecnológicos, a globalização e a submissão ao Cifrão. V. Ex.ª é um dinossauro que nem sequer vai deixar pegadas na Pedreira do Galinhas.
Supomos que essa sua doentia obsessão, por este tema, se deverá ao facto de ver muitos filmes. Não perca o seu tempo porque a realidade ultrapassa, em muito, a sua frouxa ficção.
Entretanto, e como nos pede, sugerimos-lhe alguns termos que poderá inserir no seu pseudo glossário:
«Todas as grandes burlas saíram incólumes em virtude de a justiça, durante o prazo legal, não ter exercido o seu direito de acção ou efectivado a condenação imposta.» Deste modo, a prescrição é o instrumento de maior valia para os ladranzanas de colarinho branco que, possuindo poderosas máquinas de advocacia, pagam principescamente aos que, por vezes directamente interessados, a utilizam para legalizar os seus crimes.
Tome nota: Prescrever, prescritível, prescrito. Junte ao seu glossário. E já agora não se esqueça de consultar um psicanalista.
Atentamente
Associação para a Dignificação da Arte de Furtar (ADAF)»
Seguirei o conselho quando chegar ao fim deste passatempo.
A avidez do galfarro não perdoa, deita a mão ou o gadanho; gadanhar ou gadunhar são artes do gamanço dos que sabem gamar. Gatázio é grande logro e deita-se o gatázio a alguém ou a alguma coisa. Gatear é roubar já o gateador é ladrão manhoso e gato, dar gato por lebre, fala-nos de logro. Gatuno é termo corrente e gatunice a sua prática; levar vida de gatuno é gatunar, tal como gatunagem é o colectivo destes meliantes. Gaturama ou gaturamo não faz mais que gaturar ou gaturrar. No Brasil, guinda é roubo com escalada, e, para nós, ao guindar rouba-se carteira e também, em calão, guindo é simplesmente roubo. Intrujão ou entrujão é o que faz intrujice e, ao intrujar, burla-se. Intrusão é usurpação, posse ilegal e violenta, acção de se apossar de um cargo, de uma dignidade… o dia-a-dia em suma.
E assim chegamos ao trivialissimo: LADRÃO! Que no feminino nos dá a ladra, ladrona ou mesmo ladroa. O ladranete é o ladrãozinho de meia-tigela; ladripar é surripiar coisa de pouco valor, trabalho do ladripo ou do desclassificado ladranete, já mencionado, assim como do ladrisco, um tanto tolerado, vejam bem! Na gíria do Porto ladrilho é simplesmente gatuno. E sendo ladro ladrão, ladroar a acção e ladroagem seu vício, ou bando de ladrões, ladroado é o roubado. Defesa contra o ladroísmo eleitoral vem a propósito, é mais que ladroeira ou ladroíce, ladroísmo é um hábito, um vício dos que, ao ladroeirar, vão fazendo as suas ladroeiras. Temos, por fim, o ladranzana, ladravaz, ladravão ou ladroaço, palavrões aplicados aos grandes ladrões, não àqueles que desviam milhões, não: por uma questão de pudor, estilo ou conivência, o vocábulo não se lhes aplica. Sua excelência senhor fulano de tal ladranzana, ladravaz ou ladravão! Convenhamos que temos que encontrar palavras para esses crápulas. O larápio, ao larapiar ou larapinar, faz larapice; não é violento como o que, ao latrocinar, comete o latrocínio, roubo violento, mesmo à mão armada. Leilão é roubo no Dicionário de Calão. Levar, libertar e limpar vivem nas margens do jargão; faz-se limpeza ou livrar a alguém o que lhe pertence. Ao lograr pratica-se o logro a que nos sugeitam diariamente.
Ainda me faltam cerca de setenta vocábulos. Se soubesse não me tinha metido nisto, mas como sou persistente não desisto. Até ao “Glossário IV”.
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Veja-se
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Empochar,
Fajardo
“E quando os vejo continuar no officio illesos, não posso deixar de o atribuir à destreza de sua arte, que os livra até da justiça mais vigilante, deslumbrando-a por mil modos, ou obrigando-a que os largue, e os tolere; porque até para isso têm os ladrões arte.”
“Arte de Furtar” (1742)
Com uma cultura tão rica na “Arte de Furtar”, cultura que os nossos antepassados souberam preservar e que o nosso dia-a-dia não decepciona, o vocabulário que nesta actividade, tão abrangente, surge nos media é de uma pobreza confrangedora.
Roubam-se tostões, desviam-se milhões; este amanhou-se, aquele desfalcou, aqueloutro abotoou-se. Sempre a mesma lenga-lenga. Bem contados, não vão além de escassas dezenas os termos usados na mais brilhante e lucrativa actividade no nosso país.
Preocupado com este hiato cultural, crente e ufano de contribuir para que nos possamos entender muito melhor neste negócio em galopante expansão, que é o gamanço, fui à cata de palavras que, através dos séculos, a nossa desonestidade fabricou e que o presente não desdenha, códigos que abrangem todas as classes e que, contradição das contradições, se aplicam na sua quase totalidade aos mais espoliados.
O safe-se quem puder reflecte o sistema que dá pelo nome de neoliberalismo, monstruosa ave de rapina que vai deixando o planeta exangue, devorando o Mundo e abrindo o caminho ao saque generalizado.
É tempo de engendrar novos termos e fazer reviver, pelo menos, os cerca de trezentos que a preguiça ou a rotina mantêm sepultados no esquecimento, hoje que a sede do lucro imediato torna os bolsos insaciáveis e o pudor, rechaçado, não sabe como e onde se refugiar.
Vamos a
Abafação é
Ao capiangar, furta-se com destreza, sendo o capiango um ladrão astuto, já o cafunge e o camafouje são gatunos, gente vil. Captar, faz-se com astúcia. Cardanho ou cardar é roubo na área do palmar, mas catar e catrafilar fazem parte do jargão do choro, larápio sem estatuto. Comer é espoliar, saquear, e consumir iludir. O palavrão, concussão, é específico para o funcionalismo público, uma honra. Corte é roubo, acção de cortar-se ou apropriar-se de coisa alheia. E para terminar a terceira letra do alfabeto, ficamos com cresta e crestar que se aplicam ao desfalque e ao despojar.
Para bem da nossa cultura, para que nos possamos entender falando e escrevendo sobre matéria tão actual e importante, escreva-nos se desejar enriquecer o nosso vocabulário.
Até ao próximo glossário (II).