GLOSSÁRIO (III)
«Donde colho que naõ he bom o dinheiro para paõ; que se fora paõ, nunca houvera de matar a fome.»
Arte de Furtar, Capitulo XXX
Todos os dias, são despejadas na minha caixa do correio electrónico prendas como esta:
«Excelentíssimo Senhor,
Pretende V. Ex.ª ressuscitar termos obsoletos que nada têm a ver com o país real. V. Ex.ª ignora a realidade, é um ultrapassado que não assimila o progresso, os avanços tecnológicos, a globalização e a submissão ao Cifrão. V. Ex.ª é um dinossauro que nem sequer vai deixar pegadas na Pedreira do Galinhas.
Supomos que essa sua doentia obsessão, por este tema, se deverá ao facto de ver muitos filmes. Não perca o seu tempo porque a realidade ultrapassa, em muito, a sua frouxa ficção.
Entretanto, e como nos pede, sugerimos-lhe alguns termos que poderá inserir no seu pseudo glossário:
«Todas as grandes burlas saíram incólumes em virtude de a justiça, durante o prazo legal, não ter exercido o seu direito de acção ou efectivado a condenação imposta.» Deste modo, a prescrição é o instrumento de maior valia para os ladranzanas de colarinho branco que, possuindo poderosas máquinas de advocacia, pagam principescamente aos que, por vezes directamente interessados, a utilizam para legalizar os seus crimes.
Tome nota: Prescrever, prescritível, prescrito. Junte ao seu glossário. E já agora não se esqueça de consultar um psicanalista.
Atentamente
Associação para a Dignificação da Arte de Furtar (ADAF)»
Seguirei o conselho quando chegar ao fim deste passatempo.
A avidez do galfarro não perdoa, deita a mão ou o gadanho; gadanhar ou gadunhar são artes do gamanço dos que sabem gamar. Gatázio é grande logro e deita-se o gatázio a alguém ou a alguma coisa. Gatear é roubar já o gateador é ladrão manhoso e gato, dar gato por lebre, fala-nos de logro. Gatuno é termo corrente e gatunice a sua prática; levar vida de gatuno é gatunar, tal como gatunagem é o colectivo destes meliantes. Gaturama ou gaturamo não faz mais que gaturar ou gaturrar. No Brasil, guinda é roubo com escalada, e, para nós, ao guindar rouba-se carteira e também, em calão, guindo é simplesmente roubo. Intrujão ou entrujão é o que faz intrujice e, ao intrujar, burla-se. Intrusão é usurpação, posse ilegal e violenta, acção de se apossar de um cargo, de uma dignidade… o dia-a-dia em suma.
E assim chegamos ao trivialissimo: LADRÃO! Que no feminino nos dá a ladra, ladrona ou mesmo ladroa. O ladranete é o ladrãozinho de meia-tigela; ladripar é surripiar coisa de pouco valor, trabalho do ladripo ou do desclassificado ladranete, já mencionado, assim como do ladrisco, um tanto tolerado, vejam bem! Na gíria do Porto ladrilho é simplesmente gatuno. E sendo ladro ladrão, ladroar a acção e ladroagem seu vício, ou bando de ladrões, ladroado é o roubado. Defesa contra o ladroísmo eleitoral vem a propósito, é mais que ladroeira ou ladroíce, ladroísmo é um hábito, um vício dos que, ao ladroeirar, vão fazendo as suas ladroeiras. Temos, por fim, o ladranzana, ladravaz, ladravão ou ladroaço, palavrões aplicados aos grandes ladrões, não àqueles que desviam milhões, não: por uma questão de pudor, estilo ou conivência, o vocábulo não se lhes aplica. Sua excelência senhor fulano de tal ladranzana, ladravaz ou ladravão! Convenhamos que temos que encontrar palavras para esses crápulas. O larápio, ao larapiar ou larapinar, faz larapice; não é violento como o que, ao latrocinar, comete o latrocínio, roubo violento, mesmo à mão armada. Leilão é roubo no Dicionário de Calão. Levar, libertar e limpar vivem nas margens do jargão; faz-se limpeza ou livrar a alguém o que lhe pertence. Ao lograr pratica-se o logro a que nos sugeitam diariamente.
Ainda me faltam cerca de setenta vocábulos. Se soubesse não me tinha metido nisto, mas como sou persistente não desisto. Até ao “Glossário IV”.
2 comentários:
Deixo aqui a minha opinião sobre este seu cantinho, muito interessante.
Os meus comprimentos.
Não desistas: este glossário merece ir até ao fim - e chegar a muita gente...
Um abraço.
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