Emir Sader
Guia para
quem quiser deixar de ser de esquerda
Para quem quiser deixar de ser de esquerda – ou já deixou de ser – e precisa de argumentos,
lá vão
algumas indicações que
podem ser úteis. Servem para
quem aceitou as famosas “propostas irrecusáveis”
e assumiu cargos de chefia
em grandes
publicações da mídia monopolista ou em alguma grande empresa privada, que exigem silêncio ou declarações adaptadas aos interesses
dos “patrões” (esquecendo-se de que não existem
“propostas irrecusáveis”
mas sim
espinhas dorsais
excessivamente flexíveis).
Não seriam casos
isolados, afinal as redações
desses órgãos da mídia
privada estão apinhadas de ex-comunistas,
ex-trotskistas, ex-esquerdistas em geral, “arrependidos” ou
simplesmente “convertidos” e que passam a vida
inteira – como
certos “intelectuais”
das universidades, que
ganham em troca
amplos espaços
na grande imprensa
– a dizer que
já não
são o que
foram, “limpando-se” aos olhos da burguesia dos seus
“pecadilhos de juventude”.
Indispensável a referência
a que “se é imbecil
aos 20, se não se é radical;
se é imbecil aos 40, se ainda se continua a sê-lo”, ou
alguma alusão como
passar “de incendiário
aos 20 a bombeiro aos 40”, deixando no ar a afirmação de que
se teve uma juventude agitada
antes de chegar
à idade da razão.
Um bom começo pode ser dizer que “o socialismo fracassou”, que
“está decepcionado com a esquerda”, “que
são todos
iguais”. Já
estará em condições
de dizer que
“não existe mais
esquerda e direita”,
que alguns
que se dizem de esquerda
na verdade são
uma “nova direita”,
são piores
que a direita
e que é melhor
então ficar eqüidistante. Do ceticismo
se passa fácil
ao cinismo de “votar
na direita assumida” para
derrotar a “direita
disfarçada”. Outra via
é criticar veementemente
Stalin, depois de dizer
que ele
foi igual a Hitler – “os dois
totalitarismos” –, afirmar
que ele
apenas aplicou as idéias
de Lênin, para finalmente
dizer que as origens do “totalitarismo”
já estavam na obra
de Marx.
Dizer que Weber tem mais capacidade
explicativa do que
Marx, que Raymond Aron tinha razão contra Sartre. Que
o marxismo é redutivo, só leva em conta a economia, que seu reducionismo é a base
do “totalitarismo” soviético.
Que não
deixa lugar
para a “subjetividade”, que
reduz tudo à contradição
capital–trabalho
sem levar em conta as “novas subjetividades”, advindas das contradições de gênero,
de etnia, do meio
ambiente etc.
Não falar de Fidel sem fazer preceder
seu nome
com um
“ditador” e chamá-lo de Castro em vez de
Fidel. Desqualificar Hugo Chávez como “populista” e, ao mesmo
tempo, como
“nacionalista”, dando a este a conotação de “fanatismo”,
“fundamentalismo”. Concentrar
a atenção na América Latina sobre a
Bolívia e a Venezuela como países “problemáticos”,
“instáveis”, sem
fazer nenhuma menção
à Colômbia. Sempre que
falar da extensão
da democracia no continente,
acrescentar “exceto Cuba”. Nunca falar do bloqueio norte-americano
a Cuba, mas
sempre da “transição”
– deixando sempre supor
que transitariam em
algum momento
para “democracias”
como as que
andam por aqui.
Dizer que a América Latina “não
existe”, são países
sem unidade
interna – mencionar
“cucarachos” de forma bem
depreciativa. Que
nossa política
externa tem de olhar
para o alto,
relacionar-se com as grandes potências
e tratar de ser uma
delas, em lugar
de ficar convivendo com
os paises da região e os do sul do mundo – África
do Sul, Índia,
China etc.
Pronunciar-se contra as cotas
nas universidades, dizendo que introduzem o racismo
numa sociedade organizada em
torno da “democracia
racial” – uma citação
de Gilberto Freire e o silêncio sobre Florestan Fernandes são
bem-vindos –, que
o mais importante
é a igualdade diante
da lei e a melhoria gradual
do ensino básico
e médio para que todos
tenham finalmente – vai saber
quando, mas
é preciso ter
paciência – acesso
às universidades públicas. Dizer, sempre, que o principal problema do Brasil e do mundo
é a educação. Que
empregos há, possibilidades existem, mas falta
qualificação da mão-de-obra. Que o principal não são os direitos, mas
as oportunidades – falar
da sociedade norte-americana
como a mais
“aberta”. Desqualificar
sempre o Estado,
como ineficaz,
burocrático, corrupto
e corruptor, em
contraposição à “economia
privada”, ao “mercado”,
com seu
dinamismo, sua
capacidade de inovação
tecnológica. Exaltar
as privatizações da telefonia – “antes ninguém
podia ter telefone, agora qualquer pobre diabo na rua anda
falando em celular”
– e da Vale do Rio Doce; calar sobre o sucesso
da Petrobras ou afirmar
ainda: “imagine se tivesse se tornado Petrobrax, como
estaria melhor!”.
Em suma, há tantos motivos para quem tiver decidido deixar de ser de esquerda –
bastaria o “farinha pouca,
meu pirão
primeiro” – e buscar ganhar a vida de costas pro mundo
e pra sua
própria biografia.
O “mercado” retribui generosamente os que
renegam os princípios em que um dia
acreditaram. Mas muito mais fácil é continuar a ser de esquerda. Nem são necessários pretextos,
bastam as razões sobre
o que é este
mundo e o que
pode ser o outro
mundo possível.
Emir Sader - Filõsofo e cientista social
(Sublinhado
do editor)
1 comentário:
Obrigado! Para ser lido e mastigado!
Abraço
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