domingo, 3 de outubro de 2021

Relendo ao domingo

“A PESTE” de Camus e o Covid-19

 

Pag. 92/93:

«As pessoas sentiam-se impacientes ou irritadas, e isso não são sentimentos que se oponham à peste. A sua primeira reação, por exemplo, foi incriminar a autoridade. A resposta do prefeito, em presença das críticas de que a imprensa se fazia eco -- «Não se poderia encarar a moderação das medidas adoptadas?» -- foi bastante imprevista. Até aqui, nem o jornais nem a Agência Ransdor tinham recebido qualquer comunicação oficial sobre a estatística da doença. O perfeito passou a comunica-la, dia após dia, à agência, pedindo-lhe que a publicasse semanalmente.

 Mas mesmo nisso, contudo, a reação do público não foi imediata. Com efeito, o anúncio de que a terceira semana de peste contara trezentos e dois mortos não falava à imaginação. Por um lado, talvez nem todos tivessem morrido de peste. Por outro lado, ninguém na cidade sabia quantas pessoas morriam habitualmente por semana. A cidade tinha duzentos mil habitantes. Ignorava-se se esta proporção de mortes era normal. É mesmo o género de precisões com que nunca nos preocupamos, apesar do interesse evidente que elas apresentam. Ao público faltavam, de algum modo, pontos de referência. Foi só com o tempo, ao verificar o número constante de mortes, que a opinião tomou consciência da verdade. Com efeito, a quinta semana deu trezentos e vinte e um mortos e a sexta trezentos e quarenta e cinco. A subida, pelo menos, era eloquente. Mas não era bastante forte para que os nossos concidadãos não mantivessem, no meio da sua inquietação, a impressão de que se tratava de um acidente, sem dúvida grave, mas, apesar de tudo temporário. Continuavam, assim, a circular nas ruas e a sentar-se nos terraços dos cafés. No conjunto, não eram covardes, trocavam mais gracejos que lamentos e mostravam aceitar com bom humor inconvenientes evidentemente passageiros. As aparências estavam salvas.»

Albert Camus

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