CONTO TRISTE
– UM BRAMIDO DE RAIVA
poema
Senti um frio arrepiante e um
buraco negro nas entranhas, tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio
da inglória velocidade rebentando a dor, direito à morte que está em pé na
berma do cais pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste
mundo sem sol nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com
o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força
de um desumano progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que
vivem em contramão.
Meu menino sonâmbulo de olhos
negros e pálida doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na
verdade desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade
podre.
Podia ser um menino nascido no
berço do lado, ao colo de um pai ou de um avô trabalhador-milionário,
desiludido, porque a sua fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que
não deixava de ser triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada
mais te deu do que um pai sem nada, sem prendas sem força nem entre-actos que
te enxergassem melhor sorte do que a morte.
O monstruoso comboio entra na
tua boca a toda a brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem
eco, a vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em
pedaços sobre os bonecos das tuas meias, no pavoroso silêncio dos teus olhitos
redondos.
E o mundo continua como se nada
tivesse acontecido.
Quando vi que eras tu o menino
que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a
fome, e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem
cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na
boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.
1 comentário:
Temos que pedir contas, sim! Mas não a Deus! Bom Ano e que 2025 se lembre do mártir povo da Palestina. Abraço.
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