quarta-feira, 16 de julho de 2025

A verdade sobre a mentira

A mentira não é apenas um erro ou uma fraqueza moral: é uma ferramenta sistémica de dominação. É a matéria-prima de muitas “verdades” oficiais. É uma metodologia semiótica que, bem manejada, produz obediência, resignação, consenso.

História Universal das Mentiras.

Por Fernando Buen Abad.

Mentir não é apenas falar falsamente, mentir é construir sistemas. Mentir serviu até mesmo para fundar impérios. Mentir é redigir constituições, fabricar credos, imprimir notas, assinar tratados e divulgar notícias.

A mentira não é apenas um erro ou uma fraqueza moral: é uma ferramenta sistêmica de dominação. É a matéria-prima de muitas “verdades” oficiais. É uma metodologia semiótica que, bem manejada, produz obediência, resignação, consenso. Por isso, é urgente escrever uma História Universal das Mentiras que não seja apenas uma cronologia de falsificações, mas uma crítica radical dos dispositivos simbólicos com os quais a mentira se tornou poder.

É preciso dizer claramente: a mentira tem sido sistematicamente utilizada pelas classes dominantes como um modo de produção ideológica. E foi imposta não apenas com palavras, mas com imagens, gestos, silêncios. A mentira é multimodal, multissensorial e multidimensional. Tem gramática, tem sintaxe, tem economia política. Não se trata de erros ou deslizes: trata-se de uma maquinaria. Desde os papiros egípcios até as fake news algoritmizadas, a mentira ocupou o centro da cena semiótica. Ela se transformou com o passar do tempo, mas não deixou de cumprir sua função: ocultar a exploração, desmobilizar a crítica, reescrever a história e glorificar os carrascos. Quem mentiu mais e com mais impunidade do que os vencedores?

Toda mentira poderosa precisa de uma legitimação narrativa. E para isso existem as mentiras fundacionais. No fundo de cada império bate uma grande farsa que lhe dá sentido e prestígio: o “povo escolhido”, a “missão civilizadora”, a “mão invisível do mercado”, o “destino manifesto”, o “sonho americano”… são todas variantes da mesma lógica semiótica: produzir ficções eficazes. A invasão da América foi uma mentira com tinta de códice. Não foi descoberta, foi invasão. Não foi encontro de culturas, foi genocídio. No entanto, a escola, os livros e as datas patrióticas insistem em narrá-la com o perfume rançoso da epopeia. Que semiótica legitima que um saque seja celebrado como um avanço da humanidade? A semiótica da falsidade.

Da mesma forma, a história da modernidade capitalista é uma história de mistificações. Liberdade, igualdade, fraternidade… mas somente para a burguesia. O “progresso” industrial construiu impérios às custas da miséria dos trabalhadores. A democracia representativa institucionalizou a plutocracia. O liberalismo económico se apresentou como emancipador enquanto consolidava novos jugos. Mentir é construir narrativas com efeitos materiais. Quando a história é escrita pelos vencedores, a mentira se torna lenda. O capitalismo não produz somente mercadorias: produz signos. Produz ideologia. Produz significados. E nesse processo, a mentira desempenha um papel central. Não se mente apenas nos discursos políticos, também se mente nos rótulos, nas propagandas, nas pesquisas, nas manchetes, nos algoritmos, nos dados supostamente neutros. Todo um sistema de fabricação de falsidade camuflada de objetividade.

Sua economia política da mentira requer analisar quem a produz, como ela circula, a quem beneficia e como se naturaliza. Mentir, nesse contexto, é fabricar sentido à medida do capital. E isso não é uma metáfora: é um modelo de negócio. Basta ver como operam os grandes meios de comunicação, as plataformas digitais, as consultorias de imagem e as fábricas de bots. Eles não mentem por engano, mentem por design. A mentira, assim, se torna indústria. E essa indústria tem nome: indústria cultural, indústria mediática, indústria da ignorância. Walter Benjamin já antecipou: quando a barbárie se torna cultura oficial, a mentira se torna património.

De uma perspetiva semiótica crítica, a mentira não é uma palavra isolada nem uma afirmação equivocada. É uma estrutura de sentido falsificado, sustentada por aparatos de produção simbólica. Podemos identificar pelo menos cinco operações semióticas típicas da falsidade sistémica: inversão projetiva: consiste em acusar o outro do que o próprio mentiroso faz. Exemplo: as potências imperialistas que acusam os países soberanos de ditaduras, enquanto impõem guerras, bloqueios e assassinatos. Eufemização: camuflar a violência com palavras suaves. Exemplo: chamar massacres de “danos colaterais”. Descontextualização: pegar factos reais e apresentá-los fora de seu contexto para manipular seu sentido. Omissão seletiva: mentir pelo que se cala, pelo que não se mostra. Repetição hipnótica: instalar uma mentira como verdade por simples repetição.

Hoje não estamos diante de uma decadência da verdade, mas diante de uma mutação do regime da falsidade. A chamada “pós-verdade” não significa que a verdade morreu, mas que a mentira se aperfeiçoou. Ela mudou de forma e velocidade. Adaptou-se ao ritmo das redes, à estética dos memes, ao formato dos aplicativos. A mentira contemporânea é acelerada, viral, segmentada e lucrativa. A pós-verdade é a fase digital do sistema de falsidades do capitalismo. Já não é necessário que uma mentira seja crível: basta que reforce uma emoção. O ódio, o medo, o desprezo… são os vetores afetivos da falsidade. E os laboratórios do capitalismo sabem disso. É por isso que investem milhões em estudar o comportamento do público, em projetar campanhas de manipulação emocional, em automatizar a mentira com inteligência artificial.

Exemplos? As “armas de destruição em massa” no Iraque. As “crises humanitárias” na Venezuela. O “narcoestado” como forma de criminalizar projetos soberanos na América Latina. Todas mentiras com função estratégica: justificar a intervenção, enfraquecer a organização, semear a desesperança. Diante da mentira sistémica, a crítica semiótica não pode se limitar a denunciar erros. Deve desmascarar estruturas. Deve revelar os interesses por trás das palavras. Deve construir uma pedagogia da suspeita, mas também uma pedagogia da verdade popular. A verdade não é neutra. É um campo de disputa. Uma trincheira. Uma batalha de classes. Fidel dizia: “A verdade deve ser dita, mesmo que doa”. Gramsci dizia: “A verdade é sempre revolucionária”. Lenin dizia: “A coisa mais revolucionária que se pode fazer é dizer a verdade”. E AMLO diz: “A mentira é reacionária, a verdade é revolucionária”.

 

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