sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Álvaro de Campos


Ah! Ser indiferente!
É do alto do poder da sua indiferença
Que os chefes dos chefes dominam o mundo.

Ser alheio até a si mesmo!
É do alto do sentir d’esse alheamento
Que os mestres dos mestres dominam o mundo.

Ser esquecido de que se existe!
É do alto do pensar d’esse esquecer
Que os deuses dos deuses dominam o mundo.

(Não ouvi o que dizias…
Ouvi só a música, e nem a essa ouvi…
Tocavas e falavas ao mesmo tempo? Sim, creio que tocavas e falavas ao mesmo tempo…
Com quem? Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo…)


* * *


A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas…
O vendedor de ruas, que tem um pregão exquisito,
Cheio de individualidade para quem repara…
O arcanjo isolado, esculptura numa catedral,
Syringe fugindo aos braços estendidos de Pan,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.
Eu adoro as cousas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca comprehendel-a sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às maquinas,
Para augmentar com isso a minha personalidade.
Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao collo
Como uma creança a quem a ama beija.
Eu amo todas as cousas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão bello como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não socégo nunca.
Dá-me lyrios, lyrios
E rosas também.


Álvaro de Campos

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