quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A galinha da minha vizinha





“A retoma depende da moderação salarial”

OCDE

A galilha da minha vizinha

Era uma galinha cumpridora, corpulenta, bonita mesmo, um verdadeiro luxo. Um galináceo que, no estrangeiro, dava bom rendimento e em Portugal se propunha exercer, com desvelo, a missão que a natureza lhe predestinou, necessitando de uma alimentação saudável, conforto e descanso indispensáveis, para assim manter a regularidade das posturas e a qualidade dos ovos, salvaguardar a sua integridade física e o rendimento de quem a empregava.

Acontece que a minha vizinha absorvera os modelos de gestão em voga, sabia o que queria dizer competitividade, produtividade, deslocalização e outros palavrões que rimassem com exploração.

Dia em que a galinha, por razões naturais à sua condição, não expelisse o ovo, antecipadamente contabilizado, a dona Competitividade, assim se chamava, entrava em stress, resmungava, fechava o bicho no caixote onde exercia a sua função de poedeira, batia com a porta do galinheiro e, saindo, ia congeminando modelos vários de vingança, caso o pobre bicho não correspondesse à sua cada vez mais exacerbada gula.

E porque ao pobre galináceo era impossível corresponder à produtividade estabelecida pela dona Competitividade, esta pôs em prática um plano coercivo, semelhante ao que vem sendo aplicado aos trabalhadores por conta de outrem: reduziu-lhe os meios de sustento; e, como o salário da sua galinha se resumia à alimentação, cortou-lhe a ração.

Ai não pões?! Então não comes!

E assim começou o irracional braço de ferro, imposto pela dona Competitividade à sua bela e esforçada galinha.

Se a OCDE alerta para os aumentos salariais excessivos, não obstante sermos o país da UE com as mais baixas remunerações; se os humanos com fome trabalham por qualquer preço, e humanos assim os denominam, por que razão qualquer galináceo, aliás tido como um dos animais mais estúpidos, não há-de ceder também às minhas exigências?

A dona Competitividade entrava em transe quando via uma linha de montagem; tudo muito certinho, a compasso como nas marchas militares, e estendia essa sua admiração às baterias de galinhas poedeiras: fechadas, passivas, produtivas sem barafustarem e não manifestando qualquer exigência ou lamento.

Entretanto, e porque o castigo da dona Competitividade se mantinha, a galinha da minha vizinha, já num adiantado estado de desnutrição, adoeceu e, por muito que se esforçasse, nunca mais pôs. Cada vez mais fraca, lá se ia arrastando como podia até ao Centro de Saúde onde chegava pelas cinco da manhã, para garantir a consulta nem sempre conseguida.

As terapias de choque, impostas pelas donas Competitividades são o castigo mais perverso que se possa imaginar. Sob a capa de garantir o futuro assassina-se o presente, deixam-se morrer as galinhas de hoje para garantir os ovos de amanhã.

A irracionalidade e o raciocínio canalha da dona Competitividade são de uma frieza e imoralidade tais que só gente inibida de sentimentos pode aceitar ou aplaudir.

Escorados pela sagrada rendibilidade, cometem-se os mais abjectos crimes sociais, lançando na extrema miséria agregados familiares inteiros, sem qualquer pudor ou o mais pequeno resquício de remorso.

Extorquir o pão a alguém como única condição para lhe garantir a incerta côdea de amanhã é hoje uma constante, confirmada pelas gélidas estatísticas de desemprego que nos afogam em percentagens para que esqueçamos os dramas que cada dígito representa.

A galinha da minha vizinha vai fazer greve no dia 24 de Novembro.

Um bom exemplo.


1 comentário:

Graciete Rietsch disse...

Grande Texto. Óptimas armas!!!!!

Um beijo.