«Há duas maneiras de matar: uma que se designa abertamente com o verbo matar; outra, aquela que fica subentendida habitualmente sob este eufemismo delicado: “tornar a vida impossível”. É a modalidade de assassinato lento e obscuro, que requer uma multidão de cúmplices invisíveis. É um auto-de-fé sem chamas, perpetrado por uma inquisição difusa.»
Eugène D’Ors, La vie de Goya
Um outro ano será de certeza, mas porque trará por arrasto os vícios e malefícios do ano que se diz findar; novo, novo de certo não será.
O dito “Ano Novo” transportará no seu bojo tudo o que herdar de bom ou mau quando à nascença o seu progenitor se finar.
E não poderia ser de outro modo. Como é que na sequência deste ano caquéctico, repleto de pústulas, poderá surgir um outro escorreito, saudável, no seio do qual nos dê gosto ou seja desejável viver?
Em crescendo, às dezenas de milhar, os que sobrevivem da força de trabalho expressam na rua angústia e revolta; estranho seria que assim que mudasse o calendário, saltitantes – ano novo vida nova – esquecendo os atentados de que foram vítimas durante o ano que suportaram, rasgassem a última página do calendário sorridentes, felizes.
Vive-se o desconforto das manhãs húmidas e de viscosidade que se nos cola à pele e nesse mal-estar paira um resmungar colectivo que convida ao conflito.
O descontentamento é tecido com agulhas de sofrimento, processo lento e, no entanto, seguro que atravessa horizontalmente dias, meses, anos, sem ter em conta o almanaque.
O novo ano anuncia-se, abrem-se as janelas para o ver chegar, mas perde-se o jeito de o saudar; não surge triunfal como se poderia esperar, antes sonso, desajeitado, sem o rosto da esperança ou o porte viril que nos transmitiria a confiança destroçada.
A noite está escura e o som dos camiões do lixo não são bom presságio. Ao longe ouvem-se os morteiros e a alegria manifesta-se fugaz no colorido e na luz do fogo-de-vista. Volta a escuridão sem artifícios, é a realidade que se impõe, o negrume da tristeza que acompanha a insegurança.
Adivinha-se a madrugada impenetrável. O novo dia chega-nos denso, incerto. Vultos disformes deslizam fugazes, hesitantes no caminhar sem sentido nem destino.
O nevoeiro que se apodera de nós invade a noite. É o primeiro dia do novo ano que se anuncia.
Já se ouvem os clamores!
3 comentários:
Grande texto sim senhor!
Vamos, então, romper a treva com a claridade da luta de massas.
Um abraço.
EM 2011, A LUTA CONTINUA!
Enviar um comentário