Portugal 2016:
Teoria
do Cansaço
Por Fernando Buen Abad Dominguez
(tradução Lia Amaral)
A “fadiga” é um delito de lesa humanidade.
A
“fadiga” é um desses expedientes burgueses para nos escamotear a vida.
Não há
nada que mais nos “canse” que o peso do capitalismo sobre os nossos ombros. Em
quantidade e qualidade, minuto a minuto, o capitalismo é uma máquina
trituradora de seres humanos exaustos. Concretamente, nenhuma das definições
“oficiais” do “cansaço” – ou da “fadiga” – (“esgotado”, “queimado” ou síndrome de burnout)* conseguem expressar a repercussão física e psicológica que
exerce sobre a classe trabalhadora, o modelo desapiedado de exploração
aperfeiçoado sistematicamente pelo capitalismo, como tortura de classe
convertida em grande negócio. Mas “fadiga” não é sinónimo de derrota. “A
acumulação da riqueza num extremo – escreveu Marx sessenta anos antes de
Sombart* – tem, como consequência, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria,
trabalho sofrido, escravidão, ignorância, brutalidade e degradação mental no
extremo oposto, ou seja, na classe cujo produto do seu trabalho se converte em
capital”. Leon Trotsky [1]
Com
frequência, o cansaço manifesta-se pela impotência e desespero. Não são raras
as vezes em que falece a coragem e, extenuados por jornadas irracionais de
trabalho, sucumbimos à apatia, fugindo à realidade. Os sinais de cansaço são
sempre um registo contraditório que o capitalismo anota, feliz da vida, vendo-nos sem
capacidade para o golpear onde deve ser golpeado. A fadiga que o capitalismo
inocula é também uma arma de guerra ideológica, um aparelho criminoso que
incorre em delitos de lesa humanidade de todo o tipo, não tipificados. A fadiga
é, precisamente, uma das formas criminosas de limitar a mente.
Não se
trata de qualquer “cansaço” comum ou conjuntural. Não se resolve com “repouso”,
“descanso” ou “férias”. Não se trata de “isso” que passa com divertimentos ou
entretenimentos de farândola. Não se trata com sedativos, massagens nem com
atividades de “spa” ou “fitness laboral*”. É uma depredação, uma degradação
física e psíquica que debilita e mata. Uma degeneração que atordoa, que aliena
e embrutece os seres humanos que deveriam, através do seu trabalho,
esclarecer-se, emancipar-se e desenvolver-se em felicidade. É, em suma, uma
doença progressiva e mortal do corpo e da alma.
Uma
definição insuficiente, dir-se-á: “ – O que se entende por fadiga? Na
terminologia médica, é o aparecimento precoce de cansaço uma vez iniciada uma
atividade. É uma sensação de esgotamento ou dificuldade para realizar uma
atividade física ou intelectual que não se recupera com um período de
descanso."[2] Muitas fontes dão-nos conta de diagnósticos e terapias
confusas – em palavreado médico – sem esclarecer e, pior ainda,
desconhecendo-se os tratamentos. Fazem-se malabarismos com o conceito “fadiga
crónica” apenas para se concluir que nada sabe… até hoje. Não obstante, a
“fadiga” causada pelo capitalismo, não está na mira de certa “medicina”
reducionista e encharcada em individualismo e a-historicidade aguda. Os
trabalhadores sabem muito mais. São os que mais sabem…ainda que, por vezes, sem
o compreender. Nem ”fadiga crónica”, nem burnout, nem outro eufemismo,
mesmo com as suas virtudes diagnósticas, servem para solucionar um problema
social e histórico que se invisibiliza com espessas capas de indiferença e
indolência sob o peso demencial da exploração de seres humanos individual e
coletivamente.
Democratizar
o descanso não alienado
A
burguesia, com o seu conceito de “descanso”, exibe, obscenamente, os seus antídotos
contra a “fadiga” que funcionam como sistemas de exclusão e maus tratos
psicológicos aos olhos dos trabalhadores. Os valores decadentes contidos como
chave do “prazer” burguês, poucos os podem pagar. Possuem hotéis em praias
usurpadas, em montanhas sequestradas e em todo o lugar ou paisagem onde as
jornadas extenuantes se “esquecem”. Têm mão-de-obra escravizada para os
alimentar, massajar e embriagar. Têm, para si e os da sua classe, transportes ricos
em comodidades e dinheiro para encontrar “férias” e “relax” que só podem ter
graças à “fadiga” de milhares de trabalhadores que, extenuados, nunca poderão
disfrutar de descanso real. «…O que o trabalhador vende, não é diretamente o
seu trabalho, mas sim a sua força de trabalho, cedendo temporariamente ao
capitalista o direito dela dispor… Tomás Hobbes, um dos mais velhos economistas
e dos filósofos ingleses mais originais, já viu, instintivamente, esta questão
no seu Leviathan, à qual todos os seus sucessores não deram a devida
importância. Hobbes disse: “Como em todas as coisas, o que um homem vale ou o
que se crê que valha, isto é, o seu preço representa o que se daria pelo uso da
sua força.” [3] K. Marx
As
nossas forças de produção estão cansadas. Está fatigada a nossa paciência, a
nossa razão, a nossa lógica e sensatez ante um sistema absurdo, criminoso e
genocida. Esse fardo de absurdos e aberrações que o capitalismo dejeta
diariamente tem-nos extenuado e tornado irrascíveis. Mas não estamos derrotados
porque a força do proletariado mundial está a organizar-se progressivamente. O
problema é que, além disso, a luta contra o lastro e os estragos da “fadiga”
fazem-nos perder tempo e entrar com frequência no desespero.
A
principal causa da “fadiga” gerada pelo capitalismo é o trabalho alienado e
alienante. – Isto é óbvio? Talvez. Alguns dados da OIT (Organização
Internacional do Trabalho) indicam que, mundialmente, 29% dos trabalhadores não
dorme o necessário para desempenhar as suas tarefas. A “fadiga” é a causa do
envelhecimento precoce, esgotamento emocional, despersonalização e baixa
autoestima. O trabalho extenuante e alienante está relacionado com o “stress” e
com doenças cardíacas, dores de cabeça, sono difícil, desordens
gastrointestinais e recrudescimento de problemas de saúde já existentes. Além
do mais, uma pessoa extenuada sofre, descontroladamente, insatisfeita com a
duração ou a qualidade da sua própria vida, para além da angústia diária que
sente em conciliar o sono, despertando a meio da noite muitas vezes em
sobressalto. Estes sinais apresentam também sequelas diurnas que provocam mais
“cansaço”, “fadiga”, sonolência, baixo rendimento, mudanças de humor e
mal-estar social, enquanto o relógio do patrão segue, ameaçador. E os salários,
cada vez mais, dão para menos.
Basta-nos
ver diariamente pela madrugada os trabalhadores arrastando a sua “fadiga”. É
vê-los amassados em “transportes” miseráveis que carregam os seus corpos
extenuados até às masmorras “produtivas” onde o sistema os espreme dia e noite.
É vê-los com o cansaço emaranhado nos pés a caminhar pelas ruas e avenidas onde
se amontoa a fadiga feita sujidade hedionda entre paisagens de lixo e abandono.
É ver esses milhões e milhões de rostos sonolentos, esbofeteados pelo
amanhecer, filhos da exploração e órfãos da justiça. É bem visível o modo como
a fadiga derruba vontades e amansa vidas, aturdindo-os com resignação
rotineira.
Quem
sofre a “fadiga” reage, ante estímulos menores, com atitudes e sentimentos
antipáticos para consigo e para com o seu trabalho. A OIT em 1999 definiu o
conceito de “trabalho decente” como aquele que “consiste nas aspirações das
pessoas durante a sua vida laboral. Significa contar com oportunidades de um
trabalho que seja produtivo e que produza uma remuneração digna, segurança no
posto de trabalho e proteção social para as famílias, melhores perspetivas de
desenvolvimento pessoal e integração na sociedade, liberdade para exprimir as
suas opiniões, organização e participação nas decisões que afetem as suas
vidas, e igualdade de oportunidades e tratamento para todas as mulheres e
homens”.[4] Estamos tão longe!
Quando
se trabalha, o descanso devia processar-se em felicidade e sem
constrangimentos. O descanso não devia estar associado apenas a “férias”, sem
aversão pelas tarefas produtivas ou criadoras a não ser que estas façam
parte da avalanche alienante que o capitalismo impõe. Em todo o caso, o
descanso pleno e vivificante é um conceito que não conhecemos ainda na sua
dimensão como processo anti-fadiga e anticapitalista. Em qualquer caso,
“descanso”, mental e físico, não significa “inatividade”, esse é o sentido que
a burguesia lhe dá por hedonismo de autocomplacência. Pelo contrário, o
descanso deveria ser uma atividade desalienante e social para se usufruir de
uma vida plena. A arte, o exercício, o convívio despreocupado e o ócio poderiam
ser ferramentas muito úteis, dado que, felizmente, o descanso desalienado e
desalienante permite um sono tranquilo, o quebrar das angústias, a reparação de
todas as forças, a vontade de amar e de se associar com os outros na resolução
dos problemas diários. Mas tudo isso é impossível no capitalismo.
Só
podemos lutar, sem descanso, se a moral da luta está sã e salva
Não
imaginamos ou nem conseguimos imaginar os estragos provocados na vida
quotidiana pela quantidade de fadiga que, ignorada ou desafiante, visível ou
invisível, carregamos nos ombros diariamente. Essa “fadiga”, incluindo a mais
silenciosa… expressa o chicote permanente do capital contra o trabalho
que não tem saídas, paliativos, cura nem descanso. Carregamo-lo nas orelhas e
na comissura dos lábios. E disso também estamos cansados. “Em que consiste
então a alineação do trabalho? O trabalho é externo ao trabalhador,
ou seja, não pertence ao seu ser; no seu trabalho, o trabalhador não se afirma,
nega-se; não se sente feliz, mas desgraçado; não desenvolve uma energia física
livre e espiritual, e pelo contrário mortifica o corpo e o espírito. Por isso o
trabalhador só se reconhece fora do trabalho, e no trabalho, fora de si.
Sente-se liberto quando não trabalha e quando trabalha, prisioneiro. O seu
trabalho não é voluntário, mas é trabalho forçado. Por isso, não é a satisfação
de uma necessidade, mas somente um meio para satisfazer as necessidades fora do
trabalho. O seu caráter estranho evidencia-se claramente no simples facto de
que a não existência de uma coação física ou de qualquer outro tipo leve à fuga
do trabalho como da peste. O trabalho externo, o trabalho em que o homem se
aliena, é um trabalho de auto sacrifício, de ascetismo”. Marx [5]
É
urgente averiguar todos os significados e os sentidos verdadeiros e ainda
ocultos da “fadiga”, e enuncia-los de todos as maneiras. Isso é o que realmente
pretendemos…É preciso trabalha-los porque operam como lava derretida que
petrifica todas as suas metástases. Deixa marcas nos rostos, nos estados
de alma, na postura corporal, nas costas e nos músculos… deixa a sua marca na
memória, nos sonhos e nos sentimentos. Destroça abraços e beijos. Contamina
amores e paixões, aspirações e projetos. Tritura, entre as suas veias
pétreas, muitas vontades de viver e de lutar. Essa é a sua tarefa e cumpre-a de
todas as maneiras e em mais de uma época.
Nem
sempre são visíveis os estragos causados a um trabalhador exausto, que muitas
vezes os oculta com eficácia, ou se lhe ocultam, em plena voragem da
exploração. Ao chegar a casa, saltam os demónios e espalha-se incontida
a fadiga do dia e a acumulada, destilada pela crueldade… e não há lugar de
repouso, nem nos sonhos. Quando, aparentemente, estamos a descansar, a “fadiga”
torna-se, perversamente, invisível. Instala-se, vive connosco e em nós. Vai e
vem como ser parasitário alimentando-se das nossas vidas e das vidas daqueles
com quem convivemos. A “fadiga” transpira-se e exala de muitas maneiras,
inundando a realidade com o seu bafo desmobilizador. O mais penoso é o choque de
fadigas invisíveis, carregadas por trabalhadores que, sob os seus próprios
escombros, tragicamente, disso não se apercebem justamente por estarem
demasiado cansados. “Mas a verdade é que estão tão extenuados, devido
ao excesso de trabalho, que se lhes fecham os olhos de cansaço”. Marx
Mas
também é possível que, de estádios agudos de fadiga, emerja, dialeticamente, o
seu contrário e consiga, aliando-se a outros, num salto de quantidade e
qualidade, rumar a uma luta emancipadora contra o cansaço. Não são poucos os
casos, e é verdade que esse é um dos grandes e valiosos mistérios que a
humanidade acolhe no seu ser social como promessa esclarecedora capaz de nos
fazer sair triunfantes, dos momentos crus e difíceis, por mais cansados que
estejamos. Tem-se visto, muitas vezes, a energia dos trabalhadores e povos em
luta mesmo após terem permanecido submetidos a largas e terríveis etapas de
derrotas e cansaços. Temos visto como, com um programa correto e num momento
correto, a teoria e a prática demonstram a sua indivisibilidade e,
transformando-se em força organizada, com direção revolucionária, ser capaz de
animar corpos e almas, embora, um pouco antes, tenham parecido aparentemente
derrotados. Essa é a magnificência da luta.
Em
nenhuma circunstância, o trabalho devia ser uma atividade que lesiona as
pessoas pelo cansaço físico ou intelectual. Nas condições atuais do capitalismo
em crise, o trabalho, ou seja a força de trabalho que se vende para a
sobrevivência, produz, além de miséria e frustração irreversíveis, momentos de
fadiga que atordoam e embrutecem os trabalhadores, Em face disto, não há
ciência, legislação nem programa político que defenda, objetiva e
subjetivamente os trabalhadores. Bem pelo contrário, a “fadiga” como ferramenta
da ideologia da classe dominante, é usada para esmagar a inteligência dos povos
e torturar psicologicamente as massas. Tudo isto, impunemente.
Ao fim do dia, da semana, do mês… e no fim das suas vidas, os trabalhadores convertem-se em sacos inúteis repletos de “fadiga” contagiosa, convertida em doenças, invalidez e morte. Esse é o sinal dos tempos e do capitalismo em decomposição e é o sinal da luta organizada palmo a palmo. Por isso, as Revoluções socialistas são injeções de vida e de energia para mulheres e homens que percebem os efeitos curativos da luta contra a fadiga e contra todos os seus colaterais venenos. Será só muito depois de derrotarmos o capitalismo que se extinguirão os últimos restos de fadiga histórica que a burguesia nos infligiu durante séculos tentando destruir-nos. A limpeza não será fácil, nem será rápida e dependerá do potencial criativo, da força de amar e amarmos, da magia de rir e sorrir inspirados pela alegria que emancipa… e dependerá da organização e da persistência na multiplicação das lutas com que saibamos ativar as forças anticapitalistas vitais, reparadoras e superadoras… das quais necessitamos para viver bem, de corpo e alma.
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