AGOSTO
A ciência revelou-nos o que já era óbvio:
Os Humanos
não são divisíveis por raças.
Há no entanto uns menos humanos que outros:
Os
racistas.
Agosto. Lisboa é uma cidade
sonolenta, aconchegada na modorra que o calor transporta. As ruas estreitas são
canais de frescura, veias onde circulam os que lhe mantêm a tonicidade
indispensável ao ritmo estival.
Hora de almoço. Restaurantes e
tascos de portas amordaçadas. No interior as cadeiras em exercícios de
equilíbrio fazem o pino sobre as mesas, cenários de abandono cumprindo o
calendário.
Aproveito as sombras somíticas que o
sol do meio-dia nos permite. A cidade repousa, respira tranquilidade. O
movimento é escasso. Sem pressas e muita curiosidade reparo na toponímia:
“Conde Barão”. Sorrio. Conde e Barão... Que exagero! “Poço dos Negros”... Para
quando a “Fonte dos Negros”? Pensei, matreiro, satisfeito pela ideia prenhe de
malícia.
O olfato guia-me não sei bem para
onde; misturado com o podre das sarjetas chega um odor a peixe grelhado, sigo o
filão, o cheiro encorpa, a curiosidade e a imaginação fundem-se em apetite, a
mensagem vai-se tornando clara, começo a aperceber-me do tipo de pescado que me
espera, mais uma ruela, ainda outra... e um recanto de cenário tipicamente
alfacinha surge sem surpresa. No braseiro, à entrada da tasca, carapaus e
sardinhas mostram-se fumegantes oferecendo-se a quem passa.
Cortadas a meio pelo sol que faz
fronteira com a sombra que o afasta, quatro pequenas mesas alinhadas com o
assador confundem-se com a parede.
O lugar é tranquilo, a frescura do
peixe faz alarde. Aproveito a meia sombra de uma das mesas. Sento-me.
A higiénica e proletária toalha e
guardanapo de papel não demoram, o simpático galheteiro não se faz esperar. E
neste vai e vem do empregado, pronuncio: Carapaus.
Sóbrio e preciso, o breve monólogo
ajustava-se à simplicidade do estabelecimento, além do mais não me apetecia
falar, predisposto que estava a usufruir da oportunidade que a cidade me
oferecia neste singular dia de Agosto.
Numa das restantes mesas três
operários comiam mansamente. Junto deles uma mulher falava, falava, falava.
Mansamente os homens continuavam a comer esboçando um sorriso de vez enquando.
Não longe de mim, os carapaus
rechinavam na grelha deixando cair gotas de gordura como que dizendo: vais gostar!
Entretanto a mulher continuava a
pregar. Entretido que estava com o meu peixe e de apetite em crescendo,
desejoso de um repasto calmo, só dava pelo som agudo da sua voz que me começava
a enfadar.
Falava dos pretos. Olhei-a, tinha os
olhos em mim, e quando se apercebeu que nela reparei subiu o tom de voz,
ganindo: pretos. E sorrio-me. Os operários enlevados chupavam as cabeças dos
peixes que sublinhavam com um gole de tinto. Gente que sabe misturar sabores.
O sol teimava em não me libertar a
mesa, os carapaus faziam-me negaças e não se despachavam, e a mulher, porque os
três homens não lhe davam troco, virava para mim o discurso racista: os pretos,
os pretos, os pretos.
Os meus olhos azuis num rosto
branco, agora certamente lívido, tomaram-na por alvo.
“Também sou racista!” disse. A
mulher devolveu-me de imediato um jubiloso sorriso de reconhecimento. E não lhe
dando tempo de maior euforia, continuei firme, seco: “Não posso com os
brancos!”.
Toda a expressão de alegria
transfigurou-se numa metamorfose súbita, dando lugar a um semblante amorfo onde
o espanto e a perplexidade se confundiam. Fixava-me e não entendia, havia algo
que a ultrapassava, não estava ouvindo bem ou não enxergava de feição.
E para que não lhe restassem
dúvidas, repeti de modo compassado e agressivo: “Não posso com os brancos,
ouviu bem!? E sabe porquê? Porque são os únicos que me têm lixado a vida.”
A catarse resultou, acalmei. Os
carapaus impecavelmente grelhados apresentaram-se-me alinhados, enfeitados com
um raminho de salsa. Era carapau do branco, branquinho como eu. Não gosto do
carapau negrão, prefiro o chicharro.
Já bem-humorado ia degustando
deliciado esta refeição tão nossa, e repetia para comigo: Só os brancos me têm
lixado, é certo, porque todos os outros não têm tido essa oportunidade.
Quando dei uma espreitadela para o
lado, os homens já bebiam o café e a mulher eclipsara-se.
O vírus do racismo é assim, sempre
presente, mantêm-se latente em todos os locais, intervêm se nos apanha
desprevenidos, e prolifera rapidamente se lho permitem, atingindo por vezes o
grau epidémico.
1 comentário:
Boa prosa!O racismo é sempre fruto da ignorância.Abraço
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