Se «A impaciência pede o impossível, a
saber: o alcançar da meta sem os meios» (Hegel), então há que lutar pelos meios
para alcançar a meta!
Vão continuar as grandes
lutas
há que cerrar fileiras
Quando a firmeza esmorece
Aderimos a uma causa, impelidos pela
emoção. A emoção
é o húmus do nosso
descontentamento e a injustiça a madre
e o alimento que
lhe dá consistência
e impele à ação. A consciência vamo-la
construindo e burilando na realidade onde nos
movimentamos e, destarte passando à firmeza da ação consciente.
É um processo
delicado, moroso,
que necessita de criterioso
acompanhamento para impedir
o individualismo latente
em cada
um de nós
e, se não atentos,
se instala facilmente inquinando as relações
entre os que
se nutrem dos mesmos ideais.
Vivíamos nos
meados da década
de sessenta. As preocupações
corporizavam-se. Refratários e desertores
engrossavam o fluxo migratório de um povo que fugia à repressão
e às degradantes condições sociais. A guerra
colonial começava a inquietar grande
parte da população
e, alguns por ignorância, cretinismo ou maldade supunham que
iríamos aplicar um
corretivo aos pretos, – era deste modo que se referiam aos autóctones
africanos - e regressaríamos ajoujados
de condecorações para
exibir nas paradas
de glorificação à lusitana
valentia.
A CGTP dava os seus
primeiros passos
na clandestinidade. Nas cooperativas, clubes desportivos -- onde
quer que
se pudessem organizar mesmo
sob uma legalidade
vigiada -- os trabalhadores promoviam-se
culturalmente realizando debates com escritores,
atores, pintores, músicos,
alguns padres
progressistas, poetas
e muitos outros
intelectuais democratas que se opunham ao fascismo.
As bibliotecas eram os núcleos de todas estas atividades onde
se fomentava a leitura e se divulgava livros proibidos
e outros que,
embora passados
pelos crivos
da censura, continham ainda alguma substância.
Cada vez mais
isolada a nível interno
e internacional, acossada pelos movimentos
de libertação das colónias e por uma população
que despertava e um
operariado industrial
e agrícola cada
vez mais
politizado, a besta fascista
abria as garras, rosnava: a repressão atingia o paroxismo
e, desde sempre,
o Partido Comunista
era o seu
principal alvo.
É neste clima
de sufoco que sou abordado por um empregado da livraria
onde me
deslocava com frequência e com o qual
mantinha uma relação de conivência, reservando-me ele
livros colocados no índex
ou em
vias de o
serem. Nunca nos
havíamos tratado por
tu, mas
dando a ideia de falarmos de livros
coloca-me de chofre a questão:
“Precisamos da tua ajuda. Temos que encontrar urgentemente um
lugar seguro para um camarada.”
A vida
de qualquer um
de nós encontra-se suspensa no imprevisível: uma palavra, uma frase,
um encontro
e o rumo que
lhe damos, faz de nós
outro indivíduo
para melhor ou pior, consoante a escala
de valores por
que nos
regemos.
Até então as minhas
tarefas eram semiclandestinas,
organizando, embora com
forte vigilância
da PIDE, sessões culturais, bibliotecas, contactos com
intelectuais progressistas,
ou no local
de trabalho encabeçando reivindicações.
Tendo em
conta as tarefas
que desenvolvia e o local
onde as exercia, não
seria propriamente alguém que passasse despercebido ou não
estivesse já referenciado.
Esta proposta
elevava a um nível
qualitativamente superior
as tarefas que
me eram confiadas, implicava riscos para os quais não me sentia suficientemente
preparado e, além
do mais, com
uma dificuldade acrescida: tinha dois filhos e dependeria da minha
mulher a decisão
final.
Voltei com
a urgência possível
para confirmar a nossa disponibilidade
e organizar o acolhimento
do camarada. Uma satisfação
contida e o sabor da adrenalina que
noutras ocasiões já
havia mastigado.
Trabalhos rotineiros nos primeiros tempos
de adaptação, a aprendizagem envolta em cuidados novos
e simulações diversas. A memorização
de matrículas de automóveis
da PIDE e uma atenção constante a comportamentos
envolventes mantinham todos os sentidos em permanente alerta.
Só mais tarde e
aos poucos fui sentindo que o trabalho clandestino acarretava enormes
riscos e responsabilidades,
exigindo um esforço
constante, muita
ponderação, um
grande equilíbrio
emocional como
quem caminha
no gume da faca para evitar a queda.
Eram os cuidados a ter
com a vizinhança,
o afinar da linguagem
atenuando a agressividade e temperando os nervos
no fogo lento
em que
passámos a viver.
A nível profissional vivia sob
um clima
de repressão, em
virtude da liderança
em movimentos
de contestação que
não rejeitava sempre
que necessário.
Um outro
emprego,
a meio-tempo,
para equilibrar o orçamento obrigava-me a um
esforço suplementar.
Eram as reuniões da secção
cultural de que fazia parte, a procura
de livros para
a biblioteca, contactos para
as realizações culturais e o apoio ao camarada que vivia no sótão
da minha casa
e, bem entendido,
uma atenção redobrada com a família.
O cansaço
condicionava a nossa actividade intelectual e a vida
no lamaçal opressivo
em que
o fascismo nos
mergulhava levava-nos a questionar se os riscos a que
estávamos sujeitos se justificavam, face aos perigos
constantes a que
éramos submetidos na actividade clandestina.
É sob
este estado
de espírito que
uma tarde saímos no meu
Citroën 2CV a caminho de … eu não sabia onde. O funcionário
transportava como bagagem
duas tábuas atadas com
um cordel.
Claro que
me apercebi que
o nosso destino
não seria nenhuma carpintaria
e que as tábuas
não eram mais
que um
disfarce,
no meu entender
bem conseguido.
Atento a alguma movimentação anormal,
a viajem prosseguia como habitualmente e o diálogo,
reduzido ao essencial, tornava o
percurso ainda mais
penoso. Frases
obsessivas percorriam-me a mente:
“justifica-se o risco que estou correndo?” “Servirá para
quê o que
estou fazendo”? “Que acontecerá à minha mulher e
aos meus filhos
se me prenderem?”.
Seguindo as indicações
que ia recebendo, chegámos a um local na Quinta da Lomba
onde o funcionário
desceu e, dentro do estabelecido, depois de confirmarmos as horas
em ambos
os relógios, eu
deveria estar nesse mesmo
local, precisamente
daí a dez minutos
e, no caso de um
de nós lá
não estar,
voltaríamos cinco minutos
depois e não
tornaríamos a aparecer se o encontro
não se efectuasse.
Para não ficar parado e gastar esses dez minutos,
fui andando pelas imediações do local de encontro,
atento às horas
e a todas as movimentações. Num caminhar firme,
levando à mão uma velha
bicicleta, um
homem em
fato-macaco chamou a minha atenção e aproximei-me ultrapassando-o, dado
que se encontrava no meu caminho.
Percorreu-me uma emoção
havia muito não
sentida e, de olhos
marejados, prossegui com dificuldade os poucos
segundos que
me restavam para
o reencontro. No porta-bagagens
da bicicleta, atadas com
uma corda, seguiam as tábuas que sem mim
dificilmente aí teriam chegado. Senti-me um
elo dessa grande
corrente revolucionária
que é o meu
Partido, recuperei, nesse breve mas decisivo instante,
a vontade de continuar,
a necessidade de avançar
porque nessa luta
estava o futuro dos meus
filhos e o dos filhos
de todos os oprimidos.
A imagem
do camarada da bicicleta
e a bagagem que
eu lhe
havia feito chegar
para continuar pelos mais
variados modos o seu
caminho serviu para
alimentar a minha
perseverança nos momentos
de grandes dificuldades
e perigos em
que a debilidade espreitava.
A opressão é um lodo onde o caminhar cansa e
sufoca; nele germinam vermes que nos sugam a
alma e corroem a vontade;
os estímulos que
recebemos surgem de imagens e encontros que nos marcaram e de rostos
e exemplos que
não nos
é possível esquecer.
Saber controlar a revolta conduzindo-a de acordo
com o espaço
e o tempo é mérito
do revolucionário; um
passo em
falso e perdem-se anos
de organização e sofrimento.
1 comentário:
O conhecimento de todo esse lodo repressivo leva o homem a reconhecer que é preciso desenvolver toda a cooperação com outros homens.Gostei muito do que li.Abraço
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