sábado, 19 de setembro de 2020

Crítica “cinematográfica” sobre um filme que ainda não foi rodado

PRÓXIMA ESTREIA: UMA TÉNUE LINHA PANDÉMICA

Crítica “cinematográfica” sobre um filme que ainda não foi rodado

Por Fernando Buen Abad

Tudo é previsível. Em breve (mais cedo do que se possa imaginar) aparecerá nos écrans das salas de cinema (cada vez mais convertidas em telessalas caseiras) ou nas suas variantes de exibição “por encomenda” (on demand), o show da pandemia nas mãos da ideologia dominante. Não é difícil anteciparmo-nos às produtoras cinematográficas.

Protagonizado por algum dos “galãs” mais em voga e alguma das mulheres mais objetualizadas pelo mercado da imagem audiovisual, (por essa ordem) veremos o drama dilacerante de uma “história de amor” atravessada por noções científicas em moda e a “fatalidade” de uma guerra interimperial entre chineses, russos e ianques, pelo controlo de uma vacina milagrosa e planetária, onde “o bem e o mal” disputam o mercado farmacêutico transnacional. Terá fortes condimentos de horror.

Terá cenas de alcova e nudez quanto baste, tenção dramática, violência com sangue e insultos, diálogos perversos, olhares cândidos, vestuários de luxo e contrastes de classe. Haverá perseguições em automóveis nas avenidas mais estranhas das capitais mundiais mais saturadas. Efeitos especiais a granel, impactos sonoros, música composta para manipular emoções e um enorme desperdício de recursos de procedência ignota: limusinas, aviões, iates, motocicletas e mansões infestadas de luxúria burguesa. Poderia ser uma coprodução a três.

É de esperar que a pandemia seja usada, como tudo o que o capitalismo é capaz de manobrar, no seu impudico, impune e sempiterno capricho. É de esperar que o COVID-19 acabe por ser inoculado ideologicamente e que, para culpar e desculpar aberrações de toda a espécie, apareça nos écrans como um género novo do mal que ameaça “a feliz vida burguesa” que já espreita nalguns projetos da “nova normalidade”.

E, desde já, os sucateiros da indústria cinematográfica já devem estar apresentando propostas para se aproveitarem do número de contágios, mortes e devastações sofridas por causa do vírus e por causa do sistema económico que o tornou letal. Alguns pensarão em longas- metragens de ação e outros já terão séries projetadas de 5 ou mais episódios. Talvez alguns “reality shows”, peças de teatro, novelas, contos e “comédia stand-up”. Ninguém vai querer ficar fora de um negócio que ajuda a sublimar com tramas pirosos, o drama cruel de um sistema económico putrefato que exibe as suas entranhas desumanas.

Não têm tido pudor em usar os mortos de Hiroxima e Nagasaki, os campos de extermínio financiados pelos nazis, os golpes de estado e o assassinato de líderes de movimentos sociais… não há limites para a voracidade dos sucateiros do espetáculo e seus patrocinadores. E não há sanção que se possa imaginar contra o abuso desmedido a que se submete o sofrimento humano em proveito dos negócios de uns quantos empresários do espetáculo.

A obscenidade não está só no oportunismo (previsível), não está só no facto de se comercializar com as tragédias humanas, tampouco está só na desfaçatez de acusar, os “outros” dos seus próprios defeitos, nem em procurar compulsivamente a quem deitar a culpa das suas vernáculas canalhices. A barbárie expressa-se, em toda a sua amplitude, no empenho desmesurado para encharcar as cabeças dos povos com sucata ideológica para anestesiar consciências com superdoses de entretenimento burguês e fazer disso um negócio.

A obscenidade está em esbanjar dinheiro para fabricar histórias cujo “glamour” de mercado tem como objetivo aniquilar a crítica e suplanta-la com solidariedade de classe. Empatia com o verdugo para aumentar os lucros. É muito mau. Mas não obstante o obsceno, não se trata apenas de uma questão moral. Trata-se de uma guerra semiótica, trata-se do despojo e da usurpação simbólica orquestrada pelos latifundiários dos “mass media” contra uma população mundial ensimesmada nos seus medos e nas fragilidades que se têm multiplicado na decorrência da pandemia declarada sem consulta.

Toda essa parafernália mediática, conduzida pelos monopólios da informação e as máfias farmacêuticas, militares e bancárias… terá, cedo ou tarde, expressão num ou vários filmes ou “séries” carregadas do receituário nauseabundo do êxito mediático-burguês. Repetirão a sua melancolia melosa, os rebuscados gestos de dor, alegria e êxtase; as frases marteladas de corte psicótico e supremacista, com ambição a “slogan”. Farão o impossível compactar uma pandemia de imensa magnitude numa cápsula ideológica “pay per view.”

Tudo isso já o sabemos, tudo isso é previsível e adivinhável. Talvez nos surpreendam com alguma descoberta tecnológica ou algum efeito “3D”. Para o resto, será mais do mesmo. Já o sabemos antes que o filmem. O grande desafio radica em estarmos preparados para enfrentarmos a batalha semiótica. Estarmos atentos e, em guarda intelectual e criativa, com pensamento crítico aguçado e as precauções indispensáveis para não ficar contaminado por uma ideologia tóxica e paralisante, como é a ideologia da classe dominante. Outra pandemia para a qual ainda não contamos com vacinas suficientes e ao alcance das lutas sociais. Preparemo-nos.

 

1 comentário:

Luis A. Diaz G. disse...

Somos rebaño, somos la despensa.Es necesario no alterarnos dejar que el barro mediático haga su trabajo, lime, lubrique cualquier aspereza que brote.Victimas drogadas de calma también somos, la inercia casi siempre ha triunfado.