quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Os bárbaros andam enfurecidos

 

Os bárbaros não terminaram o seu funesto desígnio universal, estão enfurecidos, necessitam de mais sangue.

“Víctor Jara: Um canto mutilado 

"Desculpe, tinha que o encontrar... Lamento dizer-lhe que o Victor morreu... Encontraram o corpo dele na morgue.

 

(... ) Peço-lhe que seja corajoso e que me acompanhe para identificá-lo. Ele usava cuecas azuis escuras. Tem de vir, porque o corpo dele está lá há quase 48 horas e, se ninguém o reclamar, será levado e enterrado numa vala comum.

(... ) Descemos uma passagem escura e entramos numa sala enorme.  O meu amigo segura o meu braço enquanto olho para as filas e filas de corpos nus empilhados, com feridas abertas, alguns com as mãos ainda amarradas atrás das costas. Há jovens e velhos... Centenas de corpos... na maioria parecem trabalhadores... centenas de corpos que foram arrastados pelos pés e colocados num monte pelas pessoas que trabalham no armazém (... ) Fico no centro da sala, procurando o Victor sem querer encontrá-lo, sou assaltado por uma onda de raiva. Eu sei que a minha garganta emite ruídos incoerentes de protesto, mas Hector reage instantaneamente. (... )

Mandam-nos para o andar de cima. A morgue está tão cheia que os corpos enchem o prédio todo, incluindo os escritórios. Um longo corredor, fileiras de portas e, no chão, uma longa fila de cadáveres, estes vestidos, alguns parecem estudantes, dez, vinte, trinta, quarenta, cinquenta... E no meio da fila descubro o Victor.

Era o Victor, embora magro muito magro. O que te fizeram para te consumir assim numa semana? Tinha os olhos abertos e parecia olhar para a frente com intensidade desafiadora, apesar da ferida na cabeça e terríveis hematomas na face. Tinha as roupas rasgadas, calças em volta dos tornozelos, camisola rasgada nas axilas, cuecas azuis, trapos em volta das ancas, como se tivessem sido cortados por uma faca ou baioneta... peito esmagado e uma terrível ferida aberta no abdômen... as mãos pareciam penduradas nos braços em ângulo estranho, como se tivesse os pulsos quebrados, mas era Victor, meu marido, meu amor.

Nesse momento, também morreu uma parte de mim. Senti que uma boa parte de mim morria enquanto eu permanecia ali, imóvel, quieta... incapaz de me mexer, de falar. "

Trecho do livro, “Víctor Jara: Um canto truncado”

Testemunho de Joan Jara

 

1 comentário:

Olinda disse...

Assisti,faz já algum tempo,a um encontro de mulheres em Havana,com a presença ainda de Fidel.Este ,a certa altura,nomeia os extremos horrores de uma ditadura,num determinado país.Não me lembro qual.Lembro ,que me vincou o "grito" geral das mulheres latinoamericanas ,que se levantavam,à vez.:E na Argentina?E na Guatemala?E na Bolívia?... Foi impressionante.Isto,para dizer,que a Pátria Grande tem sido um palco de brutalidades,apoiadas pelos yanquis e é muito difícil dizer qual a mais selvagem e brutal.Jara continua vivo nas suas canções.E um dia,não tenho dúvidas,o sonho de Bolívar será realidade.Abraço