Carlos Branco, Major-general e Investigador do IPRI-NOVA
24 Fevereiro 2023
A pior solução para os europeus é não considerarem a Ucrânia um interesse
vital e acabarem por ter de morrer por ela. Washington sabe o que quer e o que
está a fazer. Os dirigentes europeus nem por isso.
A esmagadora maioria dos comentadores nacionais afirma
de modo convicto e determinado que “a Ucrânia vai ganhar a guerra”, “a Ucrânia
tem de vencer”, como se a insistente oralização de uma vontade fosse
suficiente, e a capacidade para a concretizar um aspeto de menor importância.
Questionar o dogmatismo subjacente a esta certeza tornou-se sinónimo de apoio e
alinhamento com as posições de Moscovo.
Entenda-se por ganhar a guerra, o regresso dos
territórios presentemente anexados pela Federação da Rússia ao controlo de
Kiev, Crimeia incluída, com a consequente expulsão das forças russas do
território ucraniano, ao que se juntará a adesão de Kiev à NATO e à União
Europeia (UE).
A retirada das forças russas de Kherston e da região
de Kharkiv, no outono de 2022, deu aos observadores menos informados a sensação
de que seria possível à Ucrânia derrotar a militarmente a Rússia. Essa situação
parece estar a inverter-se, com a iniciativa estratégica e tática a pertencer
às forças russas. Mas muita água ainda passará por debaixo da ponte até
chegarmos a um resultado definitivo.
Contudo, parece avisado considerar a possibilidade
dessa vontade não se concretizar. Não tendo as opções adotadas até ao momento
conduzido ao sucesso de Kiev – apenas evitaram a sua derrota política e militar
– num conflito que já dura há um ano, justifica-se interrogar que outros
caminhos poderão conduzir ao seu triunfo, e, por acréscimo, à vitória
geopolítica dos EUA.
Os objetivos estratégicos de Washington variaram ao
longo deste ano de conflito. O plano inicial consistia na derrota militar da
Rússia, e, no seguimento disso, provocar uma mudança de regime em Moscovo (como
se essa derrota significasse automaticamente a colocação no Kremlin de
elementos liberais afetos a Washington, prática testada noutros locais, nem
sempre com sucesso).
Numa versão maximalista, essa mudança de regime
poderia provocar a substituição de Putin por um dirigente mais “à Ieltsin”, a
médio prazo a fragmentação da Rússia, inviabilizar a aproximação estratégica e
económica entre a Rússia e a Europa, em particular com a Alemanha, e acabar de
vez com as pretensões europeias de autonomia estratégica. O desvario passou a
incluir na agenda a narrativa sobre a colonização russa, e Biden a chamar
assassino a Putin.
O plano previa a manutenção do confronto ao nível
convencional sem escalar para o patamar nuclear, de acordo com a doutrina
norte-americana sobre o assunto. Veja-se o que foi escrito pela RAND
Corporation sobre uma possível confrontação militar com a China. O mesmo princípio
aplica-se à situação que estamos a viver na Ucrânia. Não interessa a Washington
que a guerra se transforme em nuclear.
Foi esclarecedora a reação norte-americana à tentativa
de Kiev envolver a NATO no conflito, quando um míssil S-300 se despenhou em território
polaco, incriminando de imediato a Rússia. A inequívoca autoria russa do
ataque, propalada sem qualquer hesitação (e investigação) por Zelenski e altos
dirigentes polacos e lituanos (assim como por alguns comentadores nacionais),
foi engolida num ápice, após uma conversa telefónica com o presidente Biden,
vindo a darem o dito por não dito.
Perante a dificuldade em atingir esse objetivo
estratégico, os EUA reformularam-no, agora numa “versão mais meiga”, apostando
“apenas” no enfraquecimento da Rússia, não só militar como económico. A
Secretária do Tesouro norte-americana afirmou serem as sanções para continuar,
mesmo que a Rússia ganhe a guerra, independentemente do entendimento que se
possa ter sobre isso. Esta reformulação de objetivos estratégicos não exclui a
possibilidade de a Ucrânia não conseguir recuperar a sua integridade
territorial.
No final de um ano de guerra, ao contrário do que era
previsto por várias instâncias, a economia russa não colapsou, e as sanções
estão longe de produzirem os resultados desejados. Putin reforçou o seu poder,
e a base tecnológica e industrial de defesa russa mostrou-se capaz de dar
resposta aos desafios que lhe têm sido colocados, o que parece não ter sido o
caso das ocidentais, que se mostraram razoavelmente incapazes de responderem às
necessidades militares de Kiev, pelo menos com oportunidade, apesar da colossal
ajuda já disponibilizada.
Estas conjeturas fazem tábua rasa do facto de uma
potência nuclear não poder perder uma guerra convencional, ainda por cima às
suas portas, assumindo contornos existenciais. Já o mesmo não se pode dizer de
guerras assimétricas, em que potências nucleares perderam várias.
Os que afirmam que a Ucrânia tem de/vai ganhar a
guerra terão de explicar como, uma vez que a fórmula a que se recorreu até
agora não deu os resultados desejados.
O recurso sistemático a avultada ajuda financeira
(ronda os 110 mil milhões de dólares), o fornecimento de armamento e
munições, intelligence e treino das forças armadas ucranianas
ajudou a evitar a sua derrota, mas não conduziu à vitória.
Primeiro, foi entregue equipamento de origem soviética
ainda na posse dos países que pertenceram ao Pacto de Varsóvia e, depois, de
equipamento ocidental. Segundo fontes russas, a Ucrânia teria recebido de
países da NATO, desde dezembro de 2021, 1.170 sistemas de defesa aérea, 440
carros de combate, 1.510 veículos de combate de infantaria e 655 sistemas de
artilharia. Apesar do insucesso desta opção, continua a insistir-se nela.
Quando este texto foi escrito, iniciava-se mais uma
entrega massiva de equipamento militar à Ucrânia, que poderá ser anacrónica e
de reduzida utilidade se não for entregue em tempo.
Se esta última tentativa voltar a falhar, uma hipótese
com elevada probabilidade de ocorrência, qual o passo seguinte que a Europa
estará disposta a dar? Envolver-se militarmente no conflito colocando forças no
terreno? Como se diz na estratégia, morre-se por interesses vitais, combate-se
por interesses importantes, e pelos restantes interesses negoceia-se.
Afinal, o que representa a Ucrânia para a Europa? É um
interesse vital, importante ou outro? Se é vital, os europeus têm de estar
preparados para lutar e morrer pela Ucrânia.
Até ao momento, parece não existir na Europa muito
interesse nisso, nem disposição para envolvimento militar no terreno com
tropas. Repetem-se os esclarecimentos de que não estamos em guerra com a
Rússia, não obstante, as declarações da ministra alemã dos Negócios
Estrangeiros Annalena Baerbock, e de muitos outros, em sentido oposto.
Com poucas exceções, a guerra na Ucrânia tem servido
para muitos países se livrarem de armamento obsoleto que jazia há décadas em
depósitos, não abrindo mão do seu equipamento mais evoluído tecnologicamente. A
isto acresce a falta de preparação em que se encontram a maioria dos países
europeus para enfrentar uma guerra deste tipo, tão habituados que estavam às
operações de paz.
Se a NATO se envolvesse num conflito com a Rússia, a
maioria dos seus Estados-membros teria munições suficientes apenas para alguns
dias, uma vez que os seus arsenais se encontram depauperados pela assistência a
Kiev.
Os dirigentes políticos europeus terão de clarificar
qual a importância que atribuem à Ucrânia, e, consequentemente, dizerem até
onde estão dispostos a que nos sacrifiquemos por ela.
Uma sondagem recentemente realizada em Berlim a dois
mil alemães adultos – um dos países a ser mais afetado por uma eventual guerra
com a Rússia –, a quem foi perguntado o que provavelmente fariam se a Alemanha
fosse objeto de um ataque militar semelhante ao ataque russo à Ucrânia, cerca
de 5% dos respondentes manifestaram prontidão para pegar voluntariamente em
armas, 6% esperavam ser convocados e mobilizados; um em cada três (33%)
tentaria continuar sua vida normal, da melhor maneira possível, quase um em
cada quatro alemães (24%) deixaria rapidamente o país. Seria muito interessante
fazer esse exercício noutros países, sem excluir Portugal.
Nem sempre o empenho retórico dos dirigentes europeus
se tem traduzido em medidas coerentes e alinhadas com a retórica. Apesar das
permanentes declarações de intenções, a Ucrânia recebeu até ao momento menos de
metade do total da assistência financeira com que os países do Ocidente se
comprometeram.
Manifestando alguma insatisfação, na recente
Conferência de Segurança de Munique, o Chanceler alemão Olaf Scholz repreendeu
os aliados por não fornecerem carros de combate à Ucrânia, os mesmos que o
pressionaram a autorizar a sua entrega. Quando foi dada luz verde, muitos
países descobriram que não tinham carros de combate para dar.
Apesar de não existir na Europa apenas uma resposta
sobre como lidar com a guerra na Ucrânia, os europeus têm de esclarecer aquilo
que pretendem e atuar em conformidade.
Estão ou não estão em guerra com a Rússia? Não podem
considerar a Ucrânia um interesse vital, e depois comportarem-se como se
tratasse de um interesse secundário. Como não podem considerar que tratando-se
de um interesse secundário, alimentem o esforço de guerra enviando armamento,
prolongando o conflito, arriscando a sua escalada, em vez de se envolverem em
iniciativas de paz que lhe ponham fim, deixando a outros a responsabilidade de
encontrarem uma solução política.
Procurando sol na eira e chuva no nabal, a pior
solução para os europeus é não considerarem a Ucrânia um interesse vital e
acabarem por ter de morrer por ela.
Washington sabe o que quer e o que está a fazer. Os
dirigentes europeus nem por isso. As incongruências escancaram as portas aos
falcões e a dirigentes revanchistas não controláveis, que anseiam por
condicionar e influenciar a tomada de decisão. O tempo para fazer escolhas
começa a escassear. A demora pode produzir consequências irreversíveis.
2 comentários:
Uma crónica lúcida. Felizmente a juntar à análise de Carlos Branco, estão outras vozes que informam o que na realidade se passa neste conflito, um pouco por todo o mundo. Inclusivamente Generais norte-americanos. Também, as populações começam a levantar-se contra o envio de armas à Ucrânia. Não é por acaso toda a histeria televisiva , nestes últimos dias, contra a Federação Russa.Abraço
Talvez seja erro meu de percepção, mas deixei de ver o Major-General Carlos Branco que antes pela meia-noite e meia era convocado por um canal de televisão para fazer a análise da situação na Ucrânia. Uma das últimas vezes em que o vi presente, teve mesmo de refrear os ímpetos de um tal senhor Cláudio que lhe fazia as perguntas. O Major-General não deixou de auxiliar Cláudio na sua marcha invectivante e disse-lhe mesmo que responderia as suas respostas e não as que o senhor Cláudio queria ouvir. Depois disso julgo que apenas uma vez mais o vi. Resta-me ler as suas crónicas desassombradas e lúcidas e talvez assim com a leitura do seu pensamento seja ganho mais terreno na luta contra a imbecilidade que parece apostada na continuação da guerra em vez de querer buscar a paz.
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