domingo, 23 de abril de 2023

“Onde estavas no 25 de Abril?”

 

Vivendo Abril em Paris

“ESTÃO A FALAR MUITO DE PORTUGAL”

A fotocópia do documento dactilografado «O “Movimento

das F.A. e a Nação», de 11.3.74, antecedeu a “Circular

nº3” da “C.D.E. – a força do povo” de 25 de Março de 1974,

esta impressa e com referências e apreciações ao “Movimento

de Oficiais acerca da sublevação do RI 5 das Caldas” e

que repetia a Circular n.º 2 com a “Circular das Forças Armadas

de 18 de Março. Estes documentos haviam chegado a

Paris e impunha-se que fossem discutidos e analisados, tendo

em conta a quem se dirigiam e em que condições. Assim o

entendeu a célula onde me encontrava organizado e, para tal,

marcámos uma reunião para as 21 horas da noite de 24 para

25 de Abril, quando todos os participantes se encontrariam

libertos das suas jornadas laborais.

Atravessei Paris, de Malakoff a La Courneuve, onde reunimos

no escritório de um dos camaradas. A discussão prolongou-se

até à uma da manhã do dia 25. Detivemo-nos na agressividade

de alguns parágrafos, nas intenções veladas de outros

e, quanto a mim, detive-me neste axioma expresso no final

do documento: «Na verdade, o exército será o “povo em

armasquando entre Exército e Povo não existirem quaisquer

barreiras». Saímos apreensivos e esperançosos, tudo se me

apresentava possível. Em que direção e para quando?

Cheguei a casa – habitava então em Villejuif – pouco antes

das três da manhã, cansado e confuso. Distante como estava,

era difícil não ser subjetivo; faltavam-me as vivências e a distância

distorcia as escassas informações que chegavam; por

maior que fosse o esforço que fizesse, a emotividade exacerbava-se e havia que recorrer a um maior esforço para impedir

que a emoção ignorasse a realidade. Como tinha um horário

de trabalho flexível, poderia dormir até às tantas. Cerca das

nove da manhã, a minha filha que tinha ido para a escola

regressou a casa correndo, acordou-me e, ofegante, foi dizendo:

“Estão a falar muito de Portugal!”.

Tinha mudado de casa havia poucos dias, não tinha telefone

nem sequer um rádio a funcionar. Pedi-lhe que fosse comprar

pilhas para o pequenino transístor de bolso e, entretanto,

fui-me arranjando para sair. Sair para onde? Trabalhando nas

comunicações, seria no meu próprio local de trabalho que

me encontraria melhor colocado para não contactar e ser

contactado pelos meus camaradas e amigos, como também,

e especialmente, pela situação privilegiada em que me encontrava,

tendo à minha disposição o Telex, na altura, o meio mais

eficiente nas telecomunicações. A decisão estava tomada -

iria “trabalhar”.

Não me excitei demasiado. Por temperamento, mantenho

sempre uma penosa calma nos momentos de grande

entusiasmo ou expectativa. Transístor colado ao ouvido, ia

recebendo de cinco em cinco minutos o ponto da situação.

Apanhei o autocarro até à Porte d’Italie, comprei tabaco e

continuei noutro autocarro até Porte d’Orléans, sempre atento

às informações sobre Portugal que continuavam a fazer

manchete. Ao chegar à Porte d’Orléans ouvi uma informação.

Não me recordo qual, mas perturbou-me; desci e, de súbito,

senti uma forte pressão no peito - a calma controlada dá nisto.

Encostei-me a um quiosque publicitário – as velhas “Colonnes

Morris” ex-libris de Paris – e pouco depois, uma voz

preocupada, seguida de uma mão que me pousou no ombro,

questionava-me num francês com sotaque castelhano: “Que

se passe-t-il camarade”?

Não era possível, num momento tão importante da minha

vida, encontrar alguém que melhor pudesse compreender o

que estava sentindo e perante quem tivesse que moderar a

minha alegria-sofrimento. Era Ângela Grimau, viúva do comunista

Julian Grimau, assassinado por Franco. Não sei ao certo

o que lhe respondi e tão-pouco o diálogo que mantivemos;

sei que fomos tomar café num local que fazia parte da minha

rotina e que, após algumas lágrimas de descompressão, saí

mais calmo e recomposto para Malakoff onde trabalhava.

Ainda não entrara no centro de comunicações e o telefone

soava; sentíamo-nos todos como que suspensos das informações

que nos chegavam e desejávamos aferir sem saber

como nem onde. Liguei o telex para Lisboa, Porto e outros

locais onde em princípio poderia obter algumas informações

mas, para meu desespero, na maior parte dos casos estavam

menos informados que eu a dois mil quilómetros de distância.

Entretanto, o telefone não parava de tocar. Trocávamos

sugestões, marcávamos encontros. Na sequência da reunião

que havíamos tido, elaborámos um comunicado que enviei

para o “Movimento das Forças Armadas”, recebido em Lisboa

às 16h07, tendo sido no dia seguinte publicado num dos

vespertinos da capital:

 

M U I T I S S I M O U R G E N T E

Ao Movimento das Forças Armadas

L I S B O A / P O R T U G A L

INTERPRETANDO OS SENTIMENTOS DOS IMIGRANTES

PORTUGUESES EM FRANÇA SAUDAMOS AS FORÇAS QUE

DERRUBARAM O REGIME FASCISTA QUEQUASE 50 ANOS

OPRIMIA O POVO PORTUGUES STOP APOIANDO AS POSIÇÕES

DO VOSSO MOVIMENTO ANTERIORES AO DIA 25 DE ABRIL

LEMBRAMOS AS MEDIDAS INDISPENSÁVEIS E IMEDIATAS A

TOMAR:

1) AMNISTIA GERAL E TOTAL PARA TODOS OS PRESOS, PERSEGUIDOS,

EXILADOS, POLÍTICOS E MILITARES E A LIBERTAÇÃO

IMEDIATA DE TODOS OS PRESOS POLÍTICOS E MILITARES.

2) ABOLIÇÃO DA PIDE/DGS

3) CESSAR-FOGO IMEDIATO NAS COLONIAS PORTUGUESAS

SEGUIDO DE ABERTURA DE NEGOCIAÇÕES PARA A INDEPENDÊNCIA

DAS MESMAS E O REGRESSO DOS NOSSOS SOLDADOS.

4) ESTABELECIMENTO DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS

NOMEADAMENTE:

a) LIBERDADE E LEGALIDADE PARA TODOS OS PARTIDOS

POLÍTICOS.

b) LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO.

c) LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

d) LIBERDADE SINDICAL

5) ABOLIÇÃO DA CENSURA

 

Emoção, como motor da intervenção expresso, neste

documento que guardo ainda hoje. Horário cumprido, saí

correndo ao encontro de amigos e camaradas. Nessa mesma

noite, resolvi regressar no primeiro comboio que saía para

Portugal.

 

 

 

1 comentário:

Olinda disse...

Lindo! Lindo e emotivo. Ser sujeito dessa "madrugada serena", é indescritível. Abraço