Vivendo Abril em Paris
“ESTÃO
A FALAR MUITO
DE PORTUGAL”
A fotocópia
do documento dactilografado «O “Movimento”
das F.A. e a Nação»,
de 11.3.74, antecedeu a “Circular
nº3” da “C.D.E. – a força do povo”
de 25 de Março de 1974,
esta já
impressa e com
referências e apreciações ao “Movimento
de Oficiais
acerca da sublevação do RI 5 das Caldas” e
que repetia a Circular n.º 2 com
a “Circular das Forças
Armadas”
de 18 de Março.
Estes documentos
haviam chegado a
Paris e impunha-se que fossem discutidos e analisados, tendo
em conta a quem
se dirigiam e em que
condições. Assim
o
entendeu a célula
onde me
encontrava organizado e, para tal,
marcámos uma reunião
para as 21 horas
da noite de 24 para
25 de Abril,
quando todos
os participantes se encontrariam
libertos das suas jornadas
laborais.
Atravessei Paris, de Malakoff a La
Courneuve, onde reunimos
no escritório
de um dos camaradas.
A discussão prolongou-se
até à uma da manhã do dia 25. Detivemo-nos na agressividade
de alguns
parágrafos, nas intenções
veladas de outros
e, quanto
a mim, detive-me neste axioma expresso
no final
do documento:
«Na verdade, o exército
só será o “povo
em
armas” quando entre
Exército e Povo
não existirem quaisquer
barreiras». Saímos apreensivos e esperançosos, tudo
se me
apresentava possível.
Em que
direção e para quando?
Cheguei a casa
– habitava então em
Villejuif – pouco antes
das três
da manhã, cansado
e confuso. Distante como
estava,
era difícil não
ser subjetivo; faltavam-me as vivências
e a distância
distorcia as escassas informações que
chegavam; por
maior que fosse o esforço
que fizesse, a emotividade
exacerbava-se e havia que recorrer
a um maior
esforço para impedir
que a emoção ignorasse a realidade. Como tinha um horário
de trabalho
flexível, poderia
dormir até às
tantas. Cerca das
nove da manhã, a minha
filha que
tinha ido
para a escola
regressou a casa
correndo, acordou-me e, ofegante, foi dizendo:
“Estão a falar
muito de Portugal!”.
Tinha mudado de casa havia poucos dias, não tinha telefone
nem sequer um
rádio a funcionar.
Pedi-lhe que fosse comprar
pilhas para o pequenino
transístor de bolso e, entretanto,
fui-me arranjando para
sair. Sair para
onde? Trabalhando nas
comunicações, seria no meu próprio
local de trabalho
que
me encontraria melhor colocado para não só contactar e ser
contactado pelos
meus camaradas
e amigos, como
também,
e especialmente,
pela situação
privilegiada em que
me encontrava,
tendo à minha
disposição o Telex,
na altura, o meio
mais
eficiente nas telecomunicações. A decisão estava tomada
-
iria “trabalhar”.
Não me excitei demasiado.
Por temperamento,
mantenho
sempre uma penosa calma
nos momentos
de grande
entusiasmo ou expectativa.
Transístor colado ao ouvido, ia
recebendo de cinco
em cinco
minutos o ponto
da situação.
Apanhei o autocarro até à Porte
d’Italie, comprei tabaco e
continuei noutro autocarro até Porte
d’Orléans, sempre atento
às informações
sobre Portugal que
continuavam a fazer
manchete. Ao chegar à Porte
d’Orléans ouvi uma informação.
Não me recordo qual,
mas perturbou-me; desci e, de súbito,
senti uma forte
pressão no peito
- a calma controlada dá nisto.
Encostei-me a um
quiosque publicitário
– as velhas “Colonnes
Morris” ex-libris de Paris – e pouco depois,
uma voz
preocupada, seguida
de uma mão que
me pousou no ombro,
questionava-me num francês com sotaque castelhano:
“Que
se passe-t-il
camarade”?
Não era possível,
num momento tão
importante da minha
vida, encontrar alguém
que melhor
pudesse compreender o
que estava sentindo e perante quem tivesse que
moderar a
minha alegria-sofrimento. Era Ângela
Grimau, viúva do comunista
Julian Grimau, assassinado por Franco. Não sei ao certo
o que
lhe respondi e tão-pouco o diálogo que
mantivemos;
sei que
fomos tomar café
num local que
fazia parte da minha
rotina e que, após
algumas lágrimas de descompressão, saí
mais calmo e recomposto para
Malakoff onde trabalhava.
Ainda não entrara no centro de comunicações
e já o telefone
soava; sentíamo-nos todos como que suspensos das informações
que nos chegavam e desejávamos aferir sem saber
como nem onde.
Liguei o telex para
Lisboa, Porto e outros
locais onde em
princípio poderia
obter algumas informações
mas, para meu
desespero, na maior
parte dos casos
estavam
menos informados que eu a dois mil quilómetros de distância.
Entretanto, o telefone não
parava de tocar. Trocávamos
sugestões, marcávamos encontros. Na
sequência da reunião
que havíamos tido, elaborámos um comunicado que
enviei
para o “Movimento das Forças Armadas”,
recebido em Lisboa
às 16h07, tendo sido no dia seguinte
publicado num dos
vespertinos da capital:
M U I T I S S
I M O U R G E N T E
Ao Movimento das Forças
Armadas
L I S B O A /
P O R T U G A L
INTERPRETANDO
OS SENTIMENTOS DOS IMIGRANTES
PORTUGUESES EM FRANÇA SAUDAMOS AS FORÇAS
QUE
DERRUBARAM O REGIME FASCISTA QUE HÁ QUASE 50
ANOS
OPRIMIA O POVO PORTUGUES STOP APOIANDO AS POSIÇÕES
DO VOSSO MOVIMENTO
ANTERIORES AO DIA
25 DE ABRIL
LEMBRAMOS AS MEDIDAS INDISPENSÁVEIS
E IMEDIATAS A
TOMAR:
1) AMNISTIA GERAL E TOTAL PARA TODOS OS PRESOS, PERSEGUIDOS,
EXILADOS, POLÍTICOS E MILITARES
E A LIBERTAÇÃO
IMEDIATA DE TODOS OS PRESOS
POLÍTICOS E MILITARES.
2) ABOLIÇÃO DA PIDE/DGS
3) CESSAR-FOGO IMEDIATO
NAS COLONIAS PORTUGUESAS
SEGUIDO DE ABERTURA DE NEGOCIAÇÕES PARA
A INDEPENDÊNCIA
DAS MESMAS E O
REGRESSO DOS NOSSOS
SOLDADOS.
4) ESTABELECIMENTO DAS LIBERDADES
FUNDAMENTAIS
NOMEADAMENTE:
a) LIBERDADE E LEGALIDADE
PARA TODOS OS
PARTIDOS
POLÍTICOS.
b) LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO.
c) LIBERDADE DE EXPRESSÃO.
d) LIBERDADE SINDICAL
5) ABOLIÇÃO DA CENSURA
Emoção, como motor
da intervenção expresso,
neste
documento que guardo ainda
hoje. Horário
cumprido, saí
correndo ao encontro
de amigos e camaradas.
Nessa mesma
noite, resolvi regressar no primeiro
comboio que
saía para
Portugal.
1 comentário:
Lindo! Lindo e emotivo. Ser sujeito dessa "madrugada serena", é indescritível. Abraço
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