sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

A política da antipolítica. Artigo de Frei Betto

"Os eleitores da política da antipolítica julgam saber o que não querem, agem pela rejeição, mas sem clareza do que realmente querem. Assim como no período de Margaret Thatcher se enfatizou a privatização do patrimônio público; na era Trump a 'privatização' das forças de segurança do Estado, pelo incentivo ao livre comércio de armas, às milícias e à proliferação de clubes de tiro; agora, pelas redes digitais, a ênfase recai sobre a 'privatização' dos vínculos sociais pelas bolhas identitárias e semânticas, cujos signos instauram tribos refratárias a qualquer proposta de diálogo e horizonte de utopia", escreve Frei Betto, escritor e educador popular, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco) e, com Paulo Freire, “Essa escola chamada vida” (Ática), entre outros livros.

Eis o artigo.

O filósofo Immanuel Kant escreveu “A crítica da razão pura” (1781) e “A crítica da razão prática” (1788). Em 1983, outro alemão, Peter Sloterdijk, lançou “A crítica da razão cínica”. Hoje, seria oportuna a obra “A crítica cínica da política da antipolítica”.

Os cínicos se alinhavam em uma tendência filosófica do século IV a.C. Caracterizavam-se pelo total desprezo às coisas materiais. Andavam nus, sem se preocuparem em cobrir o corpo. Como faziam em público suas necessidades fisiológicas, foram chamados de “cínicos”, do grego “kynimós”, que significa “como um cão”. Com o tempo, o epíteto adquiriu o significado de “debochado”. O que se aplica adequadamente a vários políticos da atualidade, como Trump, Bolsonaro e Milei.

O que há de comum entre os políticos cínicos? São propagadores de fake news; proclamam-se antipolíticos; vestem a pele do neoliberalismo; se pudessem, privatizariam até o oxigênio que respiramos; odeiam a democracia; e exaltam o uso de armas. E, no entanto, atraem multidões e vencem eleições. Como explicar?

Há vasta bibliografia voltada ao esforço de responder a esta pergunta: “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt; “O futuro da democracia”, de Norberto Bobbio; “Poliarquia: participação e oposição”, de Robert Dahl; e tantos outros.

Acredito que uma das causas do descrédito da democracia e da emergência neofascista da política da antipolítica é o alcance das redes digitais. Elas puseram fim à hegemonia dos grandes veículos de comunicação e, ao quebrar vínculos de coletividade, “privatizaram” a opinião pública. Agora, o que interessa é a opinião que circula na bolha da minha tribo digital. Estreitada a minha visão de mundo, exacerbado o individualismo, diluídos os fatos em narrativas incongruentes, ridicularizados os valores éticos e fragmentado o discurso racional, eis chegada a hora de reinventar a roda!

Se as utopias libertárias, como a sociedade socialista, foram soterradas pelo Muro de Berlim; se a democracia liberal não é capaz de deter as forças de esquerda que ousam disputar e, por vezes, ganhar eleições, então não resta alternativa senão instalar a antipolítica – o histriônico, o circense, o borderline. E tudo isso sob a tutela do cesarismo, ou seja, das forças policiais e militares.

Nesse contexto de irracionalização da política, a lógica cede lugar ao emocional, na linha do que Freud desenvolve em “Psicoterapia da histeria”. Essa redução do discurso articulado à vociferação desenfreada, odienta, agressiva, faz com que a reflexão ceda lugar ao impulso, como provocado pelos recursos da publicidade, que nos induzem a consumir sem refletir. E ao abdicar da razão, aflora-se a emoção, vulnerável em especial ao discurso religioso, que induz os fiéis à “servidão voluntária”, dispostos a se dobrarem à emergência apocalíptica do avatar.

Os eleitores da política da antipolítica julgam saber o que não querem, agem pela rejeição, mas sem clareza do que realmente querem. Assim como no período de Margaret Thatcher se enfatizou a privatização do patrimônio público; na era Trump a “privatização” das forças de segurança do Estado, pelo incentivo ao livre comércio de armas, às milícias e à proliferação de clubes de tiro; agora, pelas redes digitais, a ênfase recai sobre a “privatização” dos vínculos sociais pelas bolhas identitárias e semânticas, cujos signos instauram tribos refratárias a qualquer proposta de diálogo e horizonte de utopia.

Há quem se pergunte: como explicar que Trump e Bolsonaro, cujos governos beligerantes fracassaram também do ponto de vista administrativo, contem ainda com tantos apoiadores? Ora, a massa que os apoia não lê analistas políticos, não se orienta pelo noticiário da grande mídia, não abraça uma proposta política de futuro. Ela é anti: anticomunista, antidemocrática, antiaborto... É neofascista. O fascismo defende a estatização das forças produtivas. O neofascismo, a privatização. E para essa massa a religião funciona efetivamente como “ópio do povo”, pois venera a autoridade legitimada por líderes religiosos, abomina a pobreza, considera a prosperidade competitiva dádiva divina e exalta a meritocracia.

Se Lampedusa forjou a máxima “É preciso que tudo mude, para tudo ficar como está”, agora a política da antipolítica estabelece que “é preciso que tudo mude, para mudar tudo o que insiste em manter como está”.

Frente à antipolítica, que conta com o respaldo das plataformas digitais mobilizadas no amplo trabalho de deseducação política, só resta um antídoto: uma intensa educação política capaz de despertar a consciência crítica, religar o fio condutor da consciência histórica e induzir coletivamente ao engajamento pela conquista de uma sociedade que substitua a primazia do capital pela dos direitos humanos e da natureza.

 

(Origem do artigo)

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