"Os
eleitores da política da antipolítica julgam saber o que não querem, agem pela
rejeição, mas sem clareza do que realmente querem. Assim como no período
de Margaret Thatcher se
enfatizou a privatização do patrimônio público; na era Trump a
'privatização' das forças de segurança do Estado, pelo incentivo ao livre
comércio de armas, às milícias e à proliferação de clubes de tiro; agora, pelas
redes digitais, a ênfase recai sobre a 'privatização' dos vínculos sociais
pelas bolhas identitárias e semânticas, cujos signos instauram tribos
refratárias a qualquer proposta de diálogo e horizonte de
utopia", escreve Frei Betto, escritor e
educador popular, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco)
e, com Paulo Freire, “Essa escola chamada vida” (Ática), entre outros
livros.
Eis o artigo.
O filósofo Immanuel Kant escreveu
“A crítica da razão pura” (1781) e “A crítica da razão prática”
(1788). Em 1983, outro alemão, Peter Sloterdijk, lançou “A
crítica da razão cínica”. Hoje, seria oportuna a obra “A crítica cínica
da política da antipolítica”.
Os cínicos se
alinhavam em uma tendência filosófica do século IV a.C. Caracterizavam-se pelo
total desprezo às coisas materiais. Andavam nus, sem se preocuparem em cobrir o
corpo. Como faziam em público suas necessidades fisiológicas, foram chamados de
“cínicos”, do grego “kynimós”, que significa “como um cão”. Com o tempo, o
epíteto adquiriu o significado de “debochado”. O que se aplica adequadamente a
vários políticos da atualidade, como Trump, Bolsonaro e Milei.
O que há de
comum entre os políticos cínicos? São propagadores de fake news;
proclamam-se antipolíticos; vestem a pele do neoliberalismo; se pudessem,
privatizariam até o oxigênio que respiramos; odeiam a democracia; e exaltam o
uso de armas. E, no entanto, atraem multidões e vencem eleições. Como explicar?
Há vasta
bibliografia voltada ao esforço de responder a esta pergunta: “Como as
democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt; “O
futuro da democracia”, de Norberto Bobbio; “Poliarquia:
participação e oposição”, de Robert Dahl; e tantos
outros.
Acredito que
uma das causas do descrédito da democracia e da emergência neofascista da
política da antipolítica é o alcance das redes digitais. Elas puseram fim à
hegemonia dos grandes veículos de comunicação e, ao quebrar vínculos de
coletividade, “privatizaram” a opinião pública. Agora, o que interessa é a
opinião que circula na bolha da minha tribo digital. Estreitada a minha visão
de mundo, exacerbado o individualismo, diluídos os fatos em narrativas
incongruentes, ridicularizados os valores éticos e fragmentado o discurso
racional, eis chegada a hora de reinventar a roda!
Se as utopias
libertárias, como a sociedade socialista, foram soterradas pelo Muro de Berlim;
se a democracia liberal não é capaz de deter as forças de esquerda que ousam
disputar e, por vezes, ganhar eleições, então não resta alternativa senão
instalar a antipolítica – o histriônico, o circense, o borderline. E tudo isso
sob a tutela do cesarismo, ou seja, das forças policiais e militares.
Nesse contexto
de irracionalização da política, a lógica cede lugar ao emocional, na linha do
que Freud desenvolve em “Psicoterapia
da histeria”. Essa redução do discurso articulado à vociferação
desenfreada, odienta, agressiva, faz com que a reflexão ceda lugar ao impulso,
como provocado pelos recursos da publicidade, que nos induzem a consumir sem
refletir. E ao abdicar da razão, aflora-se a emoção, vulnerável em especial ao
discurso religioso, que induz os fiéis à “servidão voluntária”, dispostos a se
dobrarem à emergência apocalíptica do avatar.
Os eleitores
da política da antipolítica julgam saber o que não querem, agem pela rejeição,
mas sem clareza do que realmente querem. Assim como no período de Margaret Thatcher se
enfatizou a privatização do patrimônio público; na era Trump a “privatização”
das forças de segurança do Estado, pelo incentivo ao livre comércio de armas,
às milícias e à proliferação de clubes de tiro; agora, pelas redes digitais, a
ênfase recai sobre a “privatização” dos vínculos sociais pelas bolhas identitárias
e semânticas, cujos signos instauram tribos refratárias a qualquer proposta de
diálogo e horizonte de utopia.
Há quem se
pergunte: como explicar que Trump e Bolsonaro, cujos governos beligerantes
fracassaram também do ponto de vista administrativo, contem ainda com tantos
apoiadores? Ora, a massa que os apoia não lê analistas políticos, não se
orienta pelo noticiário da grande mídia, não abraça uma proposta política de
futuro. Ela é anti: anticomunista, antidemocrática, antiaborto... É
neofascista. O fascismo defende a estatização das forças produtivas. O
neofascismo, a privatização. E para essa massa a religião funciona efetivamente
como “ópio do povo”, pois venera a autoridade legitimada por líderes
religiosos, abomina a pobreza, considera a prosperidade competitiva dádiva
divina e exalta a meritocracia.
Se Lampedusa forjou a
máxima “É preciso que tudo mude, para tudo ficar como está”, agora a política
da antipolítica estabelece que “é preciso que tudo mude, para mudar tudo o que
insiste em manter como está”.
Frente à
antipolítica, que conta com o respaldo das plataformas digitais mobilizadas no
amplo trabalho de deseducação política, só resta um antídoto: uma intensa
educação política capaz de despertar a consciência crítica, religar o fio
condutor da consciência histórica e induzir coletivamente ao engajamento pela
conquista de uma sociedade que substitua a primazia do capital pela dos
direitos humanos e da natureza.
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