segunda-feira, 23 de março de 2009

Testemunho


Um desabafo ao correr da pena



Lima de Freitas

Foi-me dado o privilégio de ter tido acesso a este testemunho sentido e muito dorido que me comoveu profundamente. Há médicos já empedernidos, é natural, mas outros há com enorme sensibilidade a quem devemos prestar a nossa homenagem e dar-lhes voz.


«Gaia está mergulhada numa enorme nuvem cinzenta, e isso é mesmo muito mau para o ânimo ( eu sou daquelas em quem a luz do sol faz toda a diferença).

Estou a sair do inferno, mais de 24 horas de no meio de gente a gemer, a morrer, e eu sem grandes propostas para nada.... Aparecem muito velhos (ontem, a mais velha tinha 99 anos), muito estragados, muito sujos.... Uma tristeza sem fim. Aos 99 anos devíamos todos ter o direito de nos deixarem tranquilamente morrer na nossa cama, com alguém muito querido a dar a mão e a dizer palavras carinhosas.

Mas não: há que arrancar para o hospital, e depositar o que sobra de vidas talvez felizes, em macas com um número, que vão ser alinhadas num corredor ao lado umas das outras, 30 à espera do mesmo. Para mim isto é o inferno, a ausência total de uma mão que segure a nossa.

Gostava de não estar tão cansada disto tudo, tão farta da hipocrisia de quem governa, que por detrás de discursos populistas para o povão, impõe restrições, índices de produtividade, números. O bom doente é o que morre rápido e gasta pouco. Se ultrapassa os 6 dias regulamentares para ficar melhor vai lixar o médico, que tem de responder por isso. Por isso eu hoje tive de dar contas ao administrador porque é que o doente com hemorragia cerebral morreu ao fim de 20 dias ( deveria ter sido antes do limite da média, mas eu acho que me esqueci de avisar o doente; devia ter dito : "ó senhor fulano, veja , se acha que vai morrer é melhor aviar-se depressa , senão estamos todos bem lixados: o senhor morre à mesma, e a média do meu Serviço fica no vermelho") . A bem dizer, há uma série de doentes a quem eu devia ter feito este aviso; ao Sr António, levado por uma cirrose de uma vida a beber, ou àquele consumido por um cancro, com filhos tão pequenos que a mulher não queria que morresse à frente das crianças.... É uma agonia.

Maria da Luz Esperança (médica)
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