ABRA A BOCA
“O nosso mundo assemelha-se cada vez mais a um reino de mudos.”
Eduardo Galeano
“Abra a boca!” Ordenou o dentista. E assim se iniciou o nosso “diálogo”. Diálogo aberto, no mais lato sentido.
“Dói?” Arregalei os olhos e grunhi tentando afirmar o sim, impossível de articular. E a broca continuou o seu demoníaco rodopio, impassível à minha expressão de contido pânico.
Por entre o zumbido do infernal instrumento, o neobarbeiro ia dissertando ao ritmo do berbequim. Perguntava se eu estava de acordo, respondia por mim, afirmava, inquiria e prosseguia na sua verborreia com sabor a cravo-de-cabecinha.
Discordava consigo próprio, voltava a perguntar se me doía e continuava o seu linguajar sem qualquer interesse na resposta.
E eu de boca aberta... Actor de um diálogo, expressão fiel da modernidade democrática, onde uns falam e outros ouvem!
Não me podia queixar de me haverem mandado fechar a boca, antes pelo contrário, muito simplesmente não podia falar.
Entre duas cáries cuspi, bochechei e, ainda aturdido com o susto, interpelei: “O senhor questionou-me, pensou e respondeu por mim, não demonstrando qualquer interesse na minha opinião. Acha justo?”
O dentista olhou-me admirado.
“Não compreendo a sua estupefacção! Isso acontece-nos diariamente!
Cada vez mais podemos ver e escutar sem possibilidade de exprimirmos a nossa vontade, os nossos sentimentos.
Somos submersos por imagens e sons, perdendo a capacidade para discernir entre o que nos serve e o que devemos rejeitar.
“Jornais, rádios e televisões, maioritariamente ao serviço da incomunicação humana, estão em vias de impor a adoração unânime dos valores da sociedade neoliberal.” - Não está de acordo?
E fixando-me, o dentista, apaixonado pelo seu novo discurso, continuou: “Você pode comutar dezenas de canais de televisão, jogos de vídeo renováveis todos os meses e brevemente terá à sua disposição um “cofre” de filmes à sua escolha, podendo parar, voltar atrás ou introduzir imagens a seu gosto, ter acesso a canais de música e a milhares de serviços com milhões de dados, fazer compras, visitar museus, consultar jornais, ordenar transferências bancárias.”
E tomando novo fôlego, prosseguiu:
“Pagando nada lhe está vedado, você pode comprar a sua solidão e, impossibilitado de reter toda a informação que lhe é imposta, tem garantido o seu desequilíbrio emocional.
Pelas auto-estradas da comunicação viajará no vazio e levado aos ombros da Internet seguirá de êxtase em contemplação, abstraído de sentimentos, de alegrias vividas, de dor sentida. Não porá à prova o olfacto, o tacto e as papilas gustativas secarão nesse deserto para os sentidos, tornando-se num ser instável e indefeso. Um mostrenguito!”
O homem sentou-se, virado para o vidro fosco da janela; já não falava para mim mas para si próprio:
“Não nos sendo possível assimilar tanta informação, a desorientação fará de cada um de nós um ser descontrolado, um idiota.”
E num desabafo que mais aparentava desgosto concluiu:
“Nunca tantos homens foram arrastados para a incomunicação por um tão pequeno grupo de senhores do mundo!... Para onde vamos, para onde?”
E olhando-me de sorriso cansado: “Aqui está melhor instalado que em sua própria casa. - Tranquilizou-me. - Estou a prestar-lhe um serviço, mantenho-o lúcido, a anestesia se a aplicar será local. Porquê tanta inquietação?
É muito pior um noticiário inquinado que o pode adormecer face à realidade, deixando-o indefeso à mercê dos predadores.”
Será que o homem enlouqueceu!? Acham que sim?
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