segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Os carroceiros chegaram ao poder...

A RAMPA

“A pobreza, e a obediência quem a conserva é por força.”

Matias Aires

(Reflexões sobre a vaidade dos homens)

As imagens gravadas a fogo de emoção instalam-se, com tamanho vigor na memória, que delas dificilmente nos podemos libertar:

Calçada íngreme, o macho, atrelado à carroça repleta de pedra tentando conquistar o percurso impossível, as ferraduras sem apoio faiscando, e o animal impotente não conseguia avançar. O carroceiro, dando ao termo o significado mais pejorativo, praguejava e de chibata em riste flagelava, a golpes de raiva incontida, o animal indefeso. Numa tentativa para continuar a marcha, as patas dianteiras fraquejaram, ficando ajoelhado, preso aos varais, como alguém que implora piedade. Celerado, o monstro desce da carroça e com o cabo do chicote descarrega toda a brutalidade sobre o animal prostrado, procurando que o pobre se levante para continuar o calvário, e, porque não o consegue, num paroxismo de barbárie, com ambas as mãos em tenaz, agarra o focinho do macho e morde-o demorada e ferozmente.

Pareceu-me que o animal chorava; eu, que ainda nem sequer frequentava a primária, fugi soluçando. A imagem persegue-me sempre nas horas de injustiça que, na generalidade, se abate sobre os mais fracos.

Passados alguns anos, na primavera da minha juventude, deparo com um polícia que espancava com o cassetete um bêbado que nem forças tinha para se levantar. Intervim! Fui preso juntamente com o ébrio. Julgado sumariamente e condenado a dez dias de prisão; impulso decisivo para consolidar opções e solidificar, para sempre, a revolta consciente.

A personalidade baliza-se por miríades de aparentes pequenos nadas e, assim, aos poucos, vamos construindo a escala de valores que, uma vez assumida, forçoso é cumpri-la. E é neste compromisso que encontramos o nosso próprio equilíbrio.

Sempre recusei partilhar com o carroceiro ou o polícia de então o caminho deslizante para a ignomínia, colocando-me na rampa íngreme e difícil a caminho da justiça e da liberdade.

Hoje, assisto e resisto aos golpes de chicotes-lei, revestidos de pergaminhos democráticos, onde os poderosos zurzem aqueles que lhes puxam a carroça dos cifrões com vocábulos melífluos e, sem escrúpulos nem piedade, tentam impor-lhes caminhos escorregadios atulhados de fraudes, a caminho da burra dos banqueiros.

Em nome da modernidade, dilata-se e aprofunda-se, cada vez mais, o fosso entre os que nada têm e os que tudo açambarcam, a classe média, os pequenos comerciantes, agricultores e industriais junta-se aos assalariados para onde, aos poucos, vão escorregando também as profissões liberais. E todos estes trabalhadores, para que possamos ser competitivos, deverão nivelar salários e direitos, dolorosamente conquistados, pelos dos países onde se trabalha por dez réis de mel coado. E dentro de uma lógica redutora, escabrosa, desumana, para sermos cada vez mais atractivos aos investidores, teremos que nos despojar de tudo o que nos distingue da pobre besta que me fez chorar.

O talentoso Alphonse Daudet, na colectânea de contos reunidos em ‘Lettres de Mon Moulim’ brinda-nos com “La mule du Pape” a qual com ou sem rancor, esperou sete anos para, no local exacto e no momento preciso, usar a única mas poderosa arma que lhe fora concedida: o coice.

Não percamos a esperança; há em cada um de nós a paciência e a força da célebre mula papal, com uma importante diferença: hoje tudo se passa a grande velocidade.

Os carroceiros chegaram ao poder, há que exercitar o coice!

3 comentários:

trepadeira disse...

As armas também dão coices.

Um abraço,
mário

Nozes Pires disse...

É de crónicas como esta que se fabrica a literatura. Sendo que, toda ela quando é boa, contém uma mensagem. Ou, se preferirmos a metáfora, dispara um coice.

Fernando Samuel disse...

E a vida é feita de pequenos nadas...

Um abraço.