QUADROS EM SALDO
ou a decadência da classe tampão
“O que se passa na economia,
mais dia, menos dia, bate-nos à porta.”
La Palice (?)
Quando
os saldos abriram, rondei pelos estabelecimentos de fina alfaiataria onde os
bem instalados na vida, embora muitas das vezes lá se encontrem provisoriamente,
compram os luxuosos trajes. Ainda o estabelecimento não abrira as portas e já
uma bicha de gente, bem comportada, se perfilava para o assalto.
Na
sua quase totalidade eram homens que rondavam a cinquentena, fisionomias onde
se espelhavam preocupações estruturais, cabelos negligentemente pintados,
roupas de marca já um tanto deslavadas e uma réstia de altivez não convincente.
Faziam por se esconder por detrás de um Financial Times ou qualquer outro
jornal de negócios que lhes emprestasse a importância perdida, se é que alguma
vez a tinham tido.
Alguns, talvez com receio de serem reconhecidos, naturalmente envergonhados por
recorrerem ao refugo da época, eles a quem outrora lhes telefonavam informando-os das novas colecções, mantinham-se à distância, assim como quem ali se encontra por acaso.
Eram
antigos empresários com meteóricos sucessos e falências explosivas, ex-quadros,
principescamente remunerados, carro com motorista que lhes levavam
os filhos ao colégio e a esposa aos salões de chá. Cegos com o resplendor da
competitividade, usaram todos os meios que a selva lhes proporcionara para se
elevarem ao ponto mais alto do abismo, até serem empurrados por outros mais
astuciosos, sem que, no entanto, alguma vez tivessem procurado vislumbrar sequer
o funcionamento da máquina trituradora, o sistema que os lançara no mercado de
trabalho não já como saldos, mas como artigos descartáveis.
Procuravam
ainda viver das aparências sem se aperceberem que as situações de privilégio
têm um odor específico, um brilho inimitável.
Entrei
no estabelecimento onde os funcionários se mantinham mais atentos aos furtos de uma clientela diferente da habitual do que a usar a obsequiosidade, obrigatória nos estabelecimentos de clientela distinta; entre eles trocavam olhares de espanto, ao verem entrar antigos clientes de excepção, antes arrogantes, hoje abatidos, despersonalizados, vendidos.
Observei
um deles: delicadamente, pegou numa gravata, dobrou-a no punho esquerdo,
observando-a embevecido, e assim ficou alguns instantes; verificou o preço, ficou
pensativo e, com igual desvelo, tornou a colocá-la no mesmo lugar. Continuou à
procura não sabia bem de quê, sempre atento aos preços; voltou à gravata e repetiu
os mesmos gestos, saindo cabisbaixo como cão batido pela adversidade.
É
um espectáculo doloroso que nos remete para a voracidade autofágica do sistema
que não poupa nem os seus mais abnegados serventuários.
Também
por lá rodopiavam jovens lobos agressivos, escolhendo a pele adequada à
alcateia a que aspiram; e pelos espelhos por onde passavam miravam-se e
remiravam-se, num narcisismo próprio de quem valoriza a imagem que o espelho
lhe devolve. Pobres petizes, tantos sonhos… Novos quadros formatados nas
universidades que por aí proliferam, sem qualquer formação para a vida, para as
ciladas constantes que terão de enfrentar: para a realidade!
O futuro apresenta-se-lhes agitado; apresenta-se-nos agitado; estamos no mesmo barco e os tubarões salivam.
2 comentários:
A alta burguesia decadente,nao me emociona,se alguns precisarem de comer o pao que o diabo amassou.Pior,ê saber,que por interligacao,os debaixo,passam privacoes de toda a espêcie.
Que bom a crise também chegar até eles!!!
Um beijo.
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